Trabalho e descanso em visão bíblica


30/04/2019 #Editora Concórdia

Confira especial do Mensageiro Luterano escrito pelo Prof. Dr. Vilson Scholz, professor de Bíblia na Ulbra Canoas, RS

Trabalho e descanso em visão bíblica

DIA DO TRABALHO – A vida é mais do que trabalhar, e o descanso é mais do que parar de trabalhar...

Houve um tempo – as últimas décadas do século passado – em que se falava sobre a possibilidade de diminuir drasticamente a nossa jornada de trabalho, graças à automação ou ao uso de robôs. Um livro muito comentado naquele tempo se intitulava “A automação e o futuro do homem”. Se a Bíblia fala sobre um dia de descanso na semana de sete dias e, no século passado, já se tinha um dia e meio de descanso (metade do sábado e o domingo), a perspectiva era que a semana de trabalho poderia ser, quem sabe, reduzida a quatro dias ou até mesmo três! Perguntava-se o que as pessoas fariam com tanto tempo livre num mundo em que o trabalho seria realizado por robôs.

É claro que nada disso se confirmou. Hoje trabalhamos mais do que nunca. O termo workaholic, que designa um trabalhador compulsivo, entrou em nosso vocabulário a partir de 1968. Na mesma época, o teólogo alemão Jürgen Moltmann criou a expressão homo accelerandus, ou seja, o homem que precisa acelerar. Assim, ao lado do homo faber (o homem fabricador), do homo ludens (o homem que brinca), aparece agora esse homo accelerandus, esse homem que está sempre na corrida.

 

A VIDA É MAIS DO QUE TRABALHAR

Descansar faz parte de ritmo da vida, mas é raro encontrar alguém que faz uma pausa para refletir sobre o tema do descanso ou do lazer. Mais comum é encontrar estudos ou reflexões sobre o tema do trabalho em visão bíblica; é mais difícil aparecer uma teologia do lazer. Mas a Bíblia mostra que a vida é mais do que trabalhar, e só trabalhar. Em Eclesiastes 4.7-8, o Pregador fala sobre um homem solitário, que não tem filhos nem irmãos, mas que não cessa de trabalhar e que nunca pergunta: “Para quem estou trabalhando, se não aproveito as coisas boas da vida?”. E o sábio conclui que também isso é vaidade.

Segundo o livro de Gênesis, o primeiro dia de Adão e Eva foi um dia de descanso. O ser humano foi criado no sexto dia (Gn 1.31), e, no dia seguinte, Deus descansou (Gn 2.2-3). É possível supor que Adão e Eva participaram desse descanso. Esse início de vida humana com descanso sugere que o propósito ou destino final da humanidade não é o trabalho, mas o descanso. Deus repassou ao ser humano a sua postura em relação a trabalho e descanso. Criado à imagem de Deus, o ser humano imita Deus no trabalho e no descanso. Deus descansou, e isso fundamenta a santificação do descanso (Êx 20.10-11).

Em contraposição ao que aparece na mitologia antiga, o ser humano não foi criado para ser escravo da divindade. Fato curioso é que, entre os Dez Mandamentos, não há nenhum que diga: “Você deve trabalhar!”. Êxodo 20.9 chega perto, mas ali o foco não é o trabalho, e sim o descanso. Por isso, está correta a tradução: “Durante seis dias você pode trabalhar e fazer toda a sua obra...” (Nova Almeida Atualizada). Mas existe um mandamento que ordena santificar o dia do descanso.

Quanto ao trabalho, um texto que exerceu e ainda exerce grande influência no meio cristão é 2Tessalonicenses 3.10: “Se alguém não quer trabalhar, também não coma”. Este texto fez com que os mosteiros, durante a Idade Média, fossem também lugares de trabalho, e não apenas de meditação e culto.

 

O DESCANSO DE DEUS

Deus descansou. Isso não quer dizer que a obra da criação deixou Deus cansado; quer dizer apenas que os dias da criação chegaram ao fim. No entanto, o descanso de Deus não significa que ele se separou ou afastou definitivamente do universo criado. Em teologia, fala-se sobre a “criação contínua”. No livro de Jó se afirma: “Se Deus pensasse apenas em si mesmo e fizesse voltar para o si o seu espírito e o seu sopro, toda a humanidade morreria ao mesmo tempo, e o homem voltaria para o pó” (Jó 34.14-15). Jesus afirmou: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (Jo 5.17). O autor da carta aos Hebreus afirma que o Filho de Deus sustenta todas as coisas pela sua palavra poderosa (Hb 1.3). Por vezes se diz que descansar é “mudar de atividade”, porque, a rigor, é praticamente impossível ficar sem fazer nada. Aplicando isso ao que se diz a respeito de Deus, o descanso de Deus é a mudança da atividade criativa para a atividade de preservar o mundo, que não deixa de ser, também ela, uma atividade criativa.

Quando se considera o ministério terreno de Jesus, fica-se com a impressão de que foi marcado por uma intensa atividade. Jesus chegou a descansar? Ele próprio afirmou que o Filho do Homem não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8.20). Marcos, que é o evangelista mais rico em detalhes, nos mostra que Jesus parecia estar sempre com pressa, na medida em que insiste no uso do advérbio “logo” ou “imediatamente”. Alguém poderia dizer que Jesus finalmente descansou, quando inclinou a cabeça e entregou o espírito, na cruz (Jo 19.30). No entanto, o Filho de Deus não entrou em seu descanso eterno. Exaltado à direita de Deus, ele foi preparar um lugar para nós (Jo 14.2-3). Pode-se dizer que Jesus trabalhou e ainda trabalha para nos dar descanso (Ap 14.13). Sendo Cristo aquele que trabalhou em nosso lugar, podemos dizer que não é no trabalho e pelo trabalho que o ser humano se salva, mas no descanso. É o descanso para o qual Jesus nos convida (Mt 11.28-29).

O trabalho não é castigo pela rebelião contra Deus (Gn 3), pois o trabalho é anterior à queda em pecado (Gn 2.15). Mas essa rebelião trouxe maldição e fez com que o ser humano agora tenha de obter o seu sustento “em fadigas” (Gn 3.17). A rebelião contra Deus traz o cansaço à vida humana, em múltiplos sentidos. Mas, em Jesus, Deus chama os cansados e sobrecarregados – todos nós, sem exceção – para lhes dar alívio. Nesse sentido, o alívio do descanso não resulta do fato de pararmos de trabalhar, mas da presença de Jesus e de nossa presença junto a ele. Descansar agora, no dia do descanso (e nas férias), é a antecipação desse descanso – sempre na companhia daquele que conduz os seus “para junto das águas de descanso” (Sl 23.2; Ap 7.17).

 

NÃO É POSSÍVEL NÃO DESCANSAR

Não é possível não descansar. Chega uma hora em que temos de parar, nem que seja para algumas horas de sono. Mas, num tempo de vida agitada como hoje, é bom saber que o descanso, mais do que um intervalo entre períodos de trabalho, é o ponto alto da vida. O propósito maior da humanidade não é trabalhar sem cessar, mas desfrutar da companhia de Deus. Descansar é ter um tempo especial, cada semana, para renovação física, mental, emocional, mas principalmente espiritual. Descanso é mais do que parar de trabalhar; é participar do descanso de Deus, é ter tempo para contemplar as obras de Deus, incluindo a obra da salvação. Descansar de verdade é receber o descanso que Jesus oferece (Mt 11.28-29).

Para muitos, a semana ainda é de seis dias. Outros já desfrutam de dois dias de descanso. Hoje, de modo geral, temos mais tempo para lazer, mas, acima de tudo, mais tempo para comunhão com Deus. O lazer alcança seu ponto mais elevado quando se vive em comunhão com Deus. Melhor ainda é poder fazer isso na companhia do povo de Deus, no culto público. Porque, mais do que ordenar simplesmente que a pessoa descanse, a Bíblia fala sobre santificar o dia do descanso (Êx 20.8). E essa santificação se dá “pela palavra de Deus e pela oração” (1Tm 4.5).

LEIA MAIS: O trabalho e o trabalhador, pelo Professor emérito e escritor Donaldo Schuler, também no Mensageiro Luterano de maio (anexo, em pdf)

 

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