Remake sem vida: o ciclo do lucro


08/10/2019 #Artigos #Editora Concórdia

O filme O Rei Leão estreou no Brasil em julho e levou 2,6 milhões de pessoas às salas de cinema em apenas duas semanas. No dia 14 de agosto, os pastores Ted Giese* e Lucas André Albrecht*, ...

Remake sem vida: o ciclo do lucro

O Rei Leão: O ciclo da vida se desenrola na savana africana a partir do nascimento de Simba (JD McCrary/Donald Glover), filho do poderoso rei da selva Mufasa (James Earl Jones) e sua rainha Sarabi (Alfre Woodard). Espreitando nas sombras está o irmão de Mufasa, Scar (Chiwetel Ejiofor), que, com o nascimento de Simba, não é mais o primeiro na sucessão ao trono. O manipulador Scar assassina seu irmão Mufasa com a ajuda de um clã de hienas, liderado por Shenzi (Florence Kasumba), Kamari (Keegan-Michael Key) e Azizi (Eric André), ao causarem um estouro de animais selvagens. Scar convence Simba de que a morte de Mufasa foi culpa do garoto, e o leão-príncipe foge com medo de enfrentar sua mãe e o resto do grupo. Com Mufasa morto e Simba dado como morto, Scar torna-se rei dos leões e, juntamente com o clã de hienas, arruína o delicado equilíbrio da savana por meio da caça excessiva. Enquanto isso, Simba cresce, atingindo a maturidade e, com a ajuda de seus amigos, decide voltar para casa para enfrentar Scar, recuperar seu lugar de direito como rei do grupo, restaurar o delicado equilíbrio da savana e garantir que o “ciclo da vida” não seja interrompido.

O Rei Leão, que, novamente, tem o roteiro fortemente baseado em Hamlet, de Shakespeare,em geral parece seguir de perto a animação ganhadora do Oscar de O Rei Leão (1994), até mesmo reproduzindo alguns trechos quadro a quadro. Mas isso não acontece com o filme como um todo. Enquanto eles parecem semelhantes na superfície, um olhar mais cuidadoso vai encontrar diferenças notáveis.

A nova estética de animação realística por computador, utilizada no filme, parece algo extraído diretamente das câmeras de documentários da National Geographic; no entanto, por mais impressionante que isso seja, o filme é menos colorido que a animação em quadrinhos do original. Esta nova abordagem, na verdade, rouba da história seu aspecto de conto de fadas/história infantil, esvaziando o filme de muito de sua vida e energia. Além disso, a animação original em desenho animado proporcionava uma versatilidade incrível na representação das emoções e motivações dos personagens.

As limitações do fotorrealismo não fornecem a personagens como Zazu (John Oliver), Scar e Simba uma vasta gama de emoções, porque há um número limitado de expressões faciais que pássaros e leões reais podem fazer, ao contrário da animação tradicional, onde os cartunistas têm muito mais liberdade e flexibilidade para imitar expressões faciais humanas em seus desenhos. Isso ajuda a realçar as performances de voz a partir do que os atores gravam no estúdio. Devido às suas limitações, a animação fotorrealista, na verdade, acrescenta pressão sobre os atores de voz para que compensem a diferença. Como resultado, muitos dos dubladores parecem monótonos e sem emoção quando comparados ao trabalho de voz do filme original. Isso pode ser especialmente notado ao comparar Zazu, do filme original, dublado por Rowan Atkinson, versus John Oliver, no novo filme. Assim, enquanto as realizações técnicas da animação por computador podem ser celebradas, esta mesma conquista coloca em dúvida a necessidade real de um remake. Os Estúdios Disney, para ser justo, veem a necessidade do projeto por causa de sua rentabilidade, uma vez que ele deve arrecadar mais de um bilhão de dólares nas bilheterias, ampliando ainda mais os remakes “ação ao vivo” em seu catálogo de animação popular.

Como no desenho original, os espectadores cristãos devem estar cientes do que o filme ensina espiritualmente. Existem dois pontos de vista espirituais aparentemente concorrentes. Primeiro, o filme está enraizado no Animismo, uma espiritualidade pagã representada aqui pela ideia de que os espíritos dos mortos habitam o mundo natural. Nas duas versões do filme, isso é mostrado na ideia de que as estrelas no céu são, na verdade, os espíritos de reis bons que faleceram. Quando filhote, Simba aprende isso com Mufasa e, mais tarde, quando ele precisa se lembrar de quem ele é, o espírito de Mufasa fala com o filho, aparecendo no céu noturno em meio a uma tempestade de relâmpagos. Essa comunicação entre o falecido Mufasa e Simba acontece sob a supervisão do babuíno Rafiki, que faz o papel de xamã (John Kani). O cristianismo não ensina esse tipo de existência pós-morte, onde os espíritos ficam alojados no mundo natural, e proíbe o contato com os espíritos dos mortos (Dt 18.10-13, Is 8.19). Além disso, a Escritura ensina que este é um limite que os mortos não conseguem cruzar (Lc 16.27) e que os mortos não têm conhecimento da vida (Jó 14.1-2, 21); “Para aquele que está entre os vivos há esperança, porque mais vale um cão vivo do que um leão morto. Porque os vivos sabem que vão morrer, mas os mortos não sabem nada e não têm nenhuma recompensa a receber, porque a memória deles jaz no esquecimento” (Ec 9.4-5). Enquanto a Escritura fala da “grande nuvem de testemunhas”, no livro de Hebreus (Hb 12.1), e as confissões luteranas não proíbem orações pelos mortos (Apologia artigo XXIV [94]), não há nenhum comando ou incentivo da Bíblia para buscar o tipo de conversa encontrada em ambos, O Rei Leão (1994) e O Rei Leão (2019), entre o falecido Mufasa e seu filho Simba. Na verdade, a Escritura desencoraja esta prática.

Alguns espectadores podem ver uma analogia na conversa de Mufasa e Simba com o relato bíblico de Deus Pai falando com seu Filho de dentro da nuvem no batismo de Jesus; ou, mais tarde, no monte da Transfiguração. Esta analogia é fraca quando se considera toda a história apresentada em O Rei Leão. Mufasa é um leão vivo que morreu, e Deus, o Pai, é Deus somente; ele não morreu na tentativa de poupar a vida de seu Filho. Deus Pai nunca morreu. Novamente, filmes tais como O Rei Leão incentivam este tipo de abordagem antibíblica animista sobre os mortos, e cristãos e famílias que assistirem a eles precisam estar cientes desta preocupação, enquanto lembram que tentar fazer a “peça redonda” do filme encaixar no “buraco quadrado” do Cristianismo é inútil. Assim, mesmo que Simba seja uma espécie de figura salvadora, ele não precisa ser comparado a Jesus, e seu relacionamento com Mufasa também não precisa de ser comparado com a relação entre Jesus e Deus Pai, uma vez que esta analogia quebra facilmente. Dito isso, assim como no filme original, a relação de pai e filho entre Mufasa e Simba é calorosa e positiva, ao contrário de muitos filmes de Hollywood que apresentam pais distantes, abusivos, ineptos ou ausentes. Esse elemento positivo do filme pode ser elogiado sem fazer analogias forçadas com Jesus e Deus Pai.  

O segundo ponto de vista espiritual apresentado em O Rei Leão é um materialismo naturalístico antiespiritual. Perto do início do filme, quando Mufasa e o jovem Simba olham para o reino juntos, Mufasa explica o ciclo da vida e da natureza do mundo em que vivem, com base em simples naturalismo materialista. Aranhas, elefantes e antílopes são mostrados enquanto Mufasa explica o delicado equilíbrio da vida na savana; e quando ele diz a Simba que todos eles precisam ser respeitados, o filhote pergunta: “Mas não podemos comer o antílope?”, Ao que Mufasa responde , “Sim, mas, quando morremos, nós nos tornamos grama; e os antílopes comem grama”. Esse ponto de vista também é enfatizado quando Mufasa diz: “Tudo o que a luz toca pertence ao nosso reino. Mas o tempo de um rei como governante nasce e se põe, como o sol. Um dia Simba, o sol vai se pôr no meu tempo aqui, e vai nascer para você como o novo rei”. Ao que Simba pergunta ao pai: “Tudo isto me pertence?”. Mufasa responde: “Isto não pertence a ninguém, mas será sua responsabilidade protegê-lo. Tudo o que a luz toca... enquanto outros olham para o que podem pegar para si, um verdadeiro rei procura aquilo que ele pode doar aos outros”.

Observe bem esta fala, “Não pertence a ninguém”. Ela não aparece na versão de 1994. No desenho original, quando Simba pergunta: “Um dia tudo isto será meu?”, Mufasa responde: “Tudo. Tudo o que a luz toca”. O espectador cristão vai perceber que tanto o original como esta nova adição estão em desacordo com a sua confissão de fé (Sl 24.1, Sl 89.11, 1Co 10.26), e vai lembrar de passagens da Escritura onde Deus diz: “Pois são meus todos os animais do bosque e o gado aos milhares sobre as montanhas. Conheço todas as aves dos montes, e são meus todos os animais que vivem no campo. Se eu tivesse fome, não teria necessidade de dizê-lo a você, pois meu é o mundo e a sua plenitude” (Sl 50.10-12). Dizer que o cerrado africano não pertence a ninguém é como dizer que não há Deus, não há um Criador, não existe nenhuma autoridade suprema acima dos reis e fora do equilíbrio do naturalismo materialista, que deve ser mantido para o bem de todos e a continuação ininterrupta do “círculo da vida”. Outro tema aparece quando os personagens de Timão (Billy Eichner) e Pumba (Seth Rogen) – amigos leais, porém tolos, de Simba – apresentam o tempo como uma linha reta com um início, meio e fim, onde alguém pode deixar o passado para trás e seguir em frente. Embora este ponto de vista seja, na verdade, considerado tolo dentro do filme, os cristãos compartilham desta compreensão do tempo; ele não é um círculo, mas uma linha reta levando ao Último Dia e à Eternidade.

A maior parte da filosofia do “viver a vida hoje, sem preocupações” de Timão e Pumba é, de fato, tola (1Co 15.32b), mas eles são personagens que satirizam Simba por suas crenças animísticas a respeito das estrelas, que seriam os espíritos de reis mortos vigiando o mundo. Pumba objeta porque ele acha que as estrelas são “bolas de gás queimando a bilhões de quilômetros de distância”, enquanto Timão pensa que são “vaga-lumes que ficaram presos naquela grande coisa preto-azulada [o céu noturno]”. Este é um bom exemplo de como o filme contém dois pontos de vista espirituais aparentemente concorrentes, baseados em uma crença comum de que não há Deus cristão. Qualquer coisa que tente se aproximar das crenças cristãs no filme falha a conseguir relacionar-se com a expectativa da mordomia geral da natureza (Gn 1.28-30, 2.15) e no manter a segunda tábua da lei, a qual condena abuso de autoridade, assassinato, roubo, mentira e cobiça como males que precisam ser denunciados e combatidos. O público poderá notar Beyoncé cantando “seja um com o Grande Eu Sou”, enquanto Simba corre para enfrentar Scar perto do final do filme. Mesmo que isso possa soar bíblico (Êx 3.14), a canção “Spirit” também inclui letras como: “as estrelas se reúnem ao seu lado”, e é, na verdade, apenas mais Animismo.     

Filmes direcionados a crianças e famílias precisam ser levados a sério como filmes destinados a adultos, se não ainda mais. Assim como outros filmes, O Rei Leão ensina ao espectador filosofias e ideias que ou coincidem com ou contradizem o que a Bíblia ensina. Famílias que assistirem a O Rei Leão vão desejar ter uma conversa sobre o que os cristãos creem, ensinam e confessam sobre a vida, a morte, sobre a mordomia da Terra, e também a quem o mundo, em última análise, pertence. Teologicamente falando, o filme amplifica o conteúdo problemático do original por investir ainda mais em suas ideias animísticas e materialistas. Artisticamente, o filme original de 1994 continua sendo superior, e o público que assiste a O Rei Leão, de 2019, descobrirá que, embora ele tenha seus bons momentos, carece do talento visual e do charme do original.

Confira entrevista sobre esta temática com os pastores Ted Giese e Lucas Albrecht no Podcast da Rádio CPT https://soundcloud.com/radiocristoparatodos/revista-cpt-uma-analise-do-filme-o-rei-leao-14082019-radio-cpt

            *Rev. Ted Giese é pastor senior da Mount Olive Lutheran Church, em Regina, Saskatchewan, Canadá. É colaborador das revistas luteranas The Canadian Lutheran e Reporter, e faz críticas de cinema para o programa de Rádio “Issues Etc.”. Siga o pastor Giese no Twitter @ RevTedGiese .   

           *Rev. Lucas André Albrecht é pastor na Mount Olive Lutheran Church, em Regina, Canadá.

        The Lion King: Live Action (2019); Director: Jon Favreau; Writers: Jeff Nathanson (screenplay by), Brenda Chapman (Story by), Irene Mecchi, Jonathan Roberts, Linda Woolverton (Characters); Stars: James Earl Jones, Donald Glover, Beyoncé, Chiwetel Ejiofor, John Oliver, Seth Rogen, Billy Eichner, Alfre Woodard, Florence Kasumba, Keegan-Michael Key, Eric André, John Kani, Penny Johnson Jerald, JD McCrary, Shahadi Wright Joseph; Runtime: 118 min.; Rated: G (Canada) PG (Alberta) Rated PG for sequences of violence and peril, and some thematic elements.

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