Criancicese tolices


11/10/2019 #Artigos #Editora Concórdia

Deixem as crianças virem amim (Lc 18.16).

Criancicese tolices

Lembro meus tempos de criança, janelas detinham a chuva, raios traçavam caminhos de fogo sobre novelos de nuvens, trovões estremeciam o chão, ventos uivavam impetuosos como cachorros raivosos, eu me sentia protegido contra raios, ventos e cães, a estorinha do lobo mau narrava perigos vencidos. Da casa dos meus tempos de criança, os evangelhos levam ao reino dos céus. Não são raciocínios complicados que abrem as portas do abrigo celeste, nem peregrinações, nem roteiros marítimos a ilhas sonhadas, o reino dos céus não está longe, está em toda parte, acolhe pessoas do mundo inteiro, brilha no sorriso de lactantes; reinos surgem, desenvolvem-se e desaparecem, o reino dos céus floresce vigoroso, acolhe cansados e sobrecarregados.

Quem nos convida a entrar não tinha onde abrigar a cabeça, Jesus se declarou mais desprotegido do que as aves que se abrigam em ninhos, construídos contra o vento, contra a chuva, contra predadores, o reino dos céus tem paredes mais fortes do que os mais engenhosos abrigos.

Como se entra no reino dos céus? Recordemos Paulo de Tarso. Na queda de Paulo, cai a formação primorosa que os pais lhe concederam desde a infância quando o chamavam de Saulo. A visão luminosa o reduz a nada, tudo o que tinha realizado até aqui se esfarela, desaba um projeto de vida. Paulo se levanta cego, mãos solícitas o conduzem à casa de Judas, situada na rua Direita em Damasco. O iluminado começa a refletir, trabalho que toma mais de dez anos, refletia sobre as lições que tinha ouvido, reexamina os rolos de papiro que tinha lido, avalia fraquezas. Quando retorna à atividade, em lugar de ameaças de guerra, anuncia a paz.

Jesus chama desamparados, acolhe crianças. Na curiosidade infantil amanhece o desejo de conhecer, a criança avança cautelosa em veredas de muitos perigos. O afeto divino comove corações de pedra, ensina a sermos prudentes, a cuidarmos de nós mesmos, dos outros, das flores que se abrem coloridas à beira do caminho, mãos divinas reduzem dificuldades ao tamanho de brinquedos. Golias se movimenta gigantesco diante do Davi inofensivo, diminuto, infantil. Davi o derruba com uma funda, brinquedo de criança. Quando me sinto fraco é que sou forte, assegura Paulo. O poder criador renasce divino nos braços das crianças. No diminuto a vida se regenera. Quem dificulta o acesso a Jesus impede que sementes se transformem em troncos robustos.

Vivemos cansados, tarefas a realizar superam o poder de produzir, encontramos gente apressada, pessoas do nosso convívio não têm tempo para nos ouvir, atordoam-nos palavras abreviadas em circulação rápida. Corpos em movimento empunham celulares, evitam distrações, andam como fugitivos, desligam-se de todos e de tudo em busca de conexão distante, desandam no vazio, em nada. Portas se fecham, pessoas com quem poderíamos conviver isolam-se, deprimem-se em prisão domiciliar.

Jesus nos chama para uma realidade nova, o novo homem anunciado por Paulo derruba fronteiras, congrega povos em guerra, o novo homem não se orgulha de antepassados gloriosos nem de brilho social, o novo homem levanta braços de criança a um Pai de poder ilimitado. No reino dos céus vivem renascidos, crianças que nasceram para a vida, morreram para a morte, para o desespero. Somos permanentemente crianças, renascemos a cada minuto, o combate ao aniquilamento não tem fim.

O reino dos céus é casa móvel, move-se quando nós nos movemos, a casa nos protege, nela vivemos e nos desenvolvemos; quem entra como criança, vive nela como criança; Deus nos confere o poder de realizar grandes coisas na vida diária, do poder infinito procedem soluções imprevistas. Somos simultaneamente crianças e adultos, confiança infantil sustenta a reflexão adulta.

Fala-se em criancices, melhor seria incriminar tolices de adultos, atos perniciosos. Quem cultiva a espontaneidade infantil alista-se na frente que detém atos violentos. Se fazemos do tralho brinquedo, solicitamos a cooperação de muitos em lugar de arquitetar prejuízos a competidores. Se alimentamos a criança em nós, experimentamos o que significa morar no reino dos céus.

Donaldo Schüler

Professor emérito e escritor donaldoschuler@yahoo.com

Artigos Leia mais


Notícias Leia mais


Assine o Mensageiro Luterano e
tenha acesso online ou receba a
nossa revista impressa

Ver planos