Lembro
meus tempos de criança, janelas detinham a chuva, raios traçavam caminhos de
fogo sobre novelos de nuvens, trovões estremeciam o chão, ventos uivavam impetuosos
como cachorros raivosos, eu me sentia protegido contra raios, ventos e cães, a
estorinha do lobo mau narrava perigos vencidos. Da casa dos meus tempos de
criança, os evangelhos levam ao reino dos céus. Não são raciocínios complicados
que abrem as portas do abrigo celeste, nem peregrinações, nem roteiros
marítimos a ilhas sonhadas, o reino dos céus não está longe, está em toda parte,
acolhe pessoas do mundo inteiro, brilha no sorriso de lactantes; reinos surgem,
desenvolvem-se e desaparecem, o reino dos céus floresce vigoroso, acolhe cansados
e sobrecarregados.
Quem
nos convida a entrar não tinha onde abrigar a cabeça, Jesus se declarou mais
desprotegido do que as aves que se abrigam em ninhos, construídos contra o
vento, contra a chuva, contra predadores, o reino dos céus tem paredes mais
fortes do que os mais engenhosos abrigos.
Como se entra no reino dos céus?
Recordemos Paulo de Tarso. Na queda de Paulo, cai a formação primorosa que os
pais lhe concederam desde a infância quando o chamavam de Saulo. A visão
luminosa o reduz a nada, tudo o que tinha realizado até aqui se esfarela, desaba
um projeto de vida. Paulo se levanta cego, mãos solícitas o conduzem à casa de Judas,
situada na rua Direita em Damasco. O iluminado começa a refletir, trabalho que
toma mais de dez anos, refletia sobre as lições que tinha ouvido, reexamina os
rolos de papiro que tinha lido, avalia fraquezas. Quando retorna à atividade,
em lugar de ameaças de guerra, anuncia a paz.
Jesus chama desamparados, acolhe crianças. Na curiosidade infantil
amanhece o desejo de conhecer, a criança avança cautelosa em veredas de muitos
perigos. O afeto divino comove corações de pedra, ensina a sermos prudentes, a
cuidarmos de nós mesmos, dos outros, das flores que se abrem coloridas à beira
do caminho, mãos divinas reduzem dificuldades ao tamanho de brinquedos. Golias
se movimenta gigantesco diante do Davi inofensivo, diminuto, infantil. Davi o
derruba com uma funda, brinquedo de criança. Quando me sinto fraco é que sou
forte, assegura Paulo. O poder criador renasce divino nos braços das crianças. No
diminuto a vida se regenera. Quem dificulta o acesso a Jesus impede que
sementes se transformem em troncos robustos.
Vivemos cansados, tarefas a realizar superam o poder de
produzir, encontramos gente apressada, pessoas do nosso convívio não têm tempo
para nos ouvir, atordoam-nos palavras abreviadas em circulação rápida. Corpos
em movimento empunham celulares, evitam distrações, andam como fugitivos, desligam-se
de todos e de tudo em busca de conexão distante, desandam no vazio, em nada. Portas
se fecham, pessoas com quem poderíamos conviver isolam-se, deprimem-se em prisão
domiciliar.
Jesus
nos chama para uma realidade nova, o novo homem anunciado por Paulo derruba
fronteiras, congrega povos em guerra, o novo homem não se orgulha de
antepassados gloriosos nem de brilho social, o novo homem levanta braços de
criança a um Pai de poder ilimitado. No reino dos céus vivem renascidos,
crianças que nasceram para a vida, morreram para a morte, para o desespero. Somos
permanentemente crianças, renascemos a cada minuto, o combate ao aniquilamento não
tem fim.
O
reino dos céus é casa móvel, move-se quando nós nos movemos, a casa nos protege,
nela vivemos e nos desenvolvemos; quem entra como criança, vive nela como
criança; Deus nos confere o poder de realizar grandes coisas na vida diária, do
poder infinito procedem soluções imprevistas. Somos simultaneamente crianças e
adultos, confiança infantil sustenta a reflexão adulta.
Fala-se
em criancices, melhor seria incriminar tolices de adultos, atos perniciosos. Quem
cultiva a espontaneidade infantil alista-se na frente que detém atos violentos.
Se fazemos do tralho brinquedo, solicitamos a cooperação de muitos em lugar de
arquitetar prejuízos a competidores. Se alimentamos a criança em nós, experimentamos
o que significa morar no reino dos céus.