Eu já estive lá, abraçando um assassino...


12/03/2020 #Artigos #Editora Concórdia

Uma crônica da angustiante e monstruosa natureza humana

Eu já estive lá, abraçando um assassino...

Durante quase um ano fiz visitas aos internos de um Presídio Estadual no Rio Grande do Sul. De quinze em quinze dias, domingo de manhã, estávamos lá. Eu e alguns colegas acompanhados do querido Padre Ed Benya que nos abriu as portas para esta experiência. Chegávamos, “Father” Ed fazia o sinal da cruz, assinávamos o termo de compromisso, sem revista, entrávamos e quando a maciça porta de ferro fechava nas nossas costas, sentíamos um pouco do que é estar preso


Só quem esteve lá dentro sabe o que isso significa. Condições precárias, doenças, abandono, depressão e saudade. Quando passávamos pelas celas volta e meia ouvíamos alguém gritar: “Liberdade aos cativos!”. Embora desejassem ser libertados das grades, e muitos que lá estavam nem sequer haviam sido julgados, pacientes com prisão provisória há mais de três anos, era outra liberdade que levávamos para estes seres humanos. A libertação do cativeiro de suas culpas diante de Deus, a libertação através de um abraço, de uma palavra amiga, de uma palavra evangélica de misericórdia aos que reconheciam as suas culpas.


Muitos diziam-se injustiçados e inocentes, algo comum nas cadeias mundo afora. Acredito que alguns deles realmente estão presos injustamente, sem um julgamento justo, nem todos conseguem pagar um advogado. Mas a grande maioria está lá pagando por seus crimes, alguns terríveis, monstruosos, comuns aos psicopatas. Por isso mesmo, nunca perguntava por seus crimes, nunca emitia qualquer julgamento, pois um juiz já havia batido o martelo e feito cumprir a lei pelos crimes cometidos. Não cabia a mim, não cabe a ninguém julgar quem já foi julgado.


Neste período convivi com um detento que chamarei de Carlos. Passamos o ano inteiro conversando sobre diversas coisas, mas Carlos nunca se abria. Nunca dizia o motivo pelo qual estava lá. No último dia deste período de um ano, e sabendo disso, que provavelmente não voltaríamos a nos ver, Carlos se abriu comigo, contou-me seu crime. Confesso que fiquei abismado com o crime cometido, estou certo que deixaria muitos de “cabelos em pé”.


Coloquei-me no lugar da família que Carlos tanto fez sofrer, senti um nó no estômago, pois pensei: e se fosse comigo? Mas ao final da “confissão” perguntei a ele qual era o seu sentimento a respeito do que cometera, ele olhou para baixo e disse: “se eu pudesse voltar no meu caminho, não faria tanta gente sofrer. Mas não posso voltar, preciso seguir, sinto muito pelo que fiz”. Lembro que falei do perdão de Jesus, como Jesus mergulhou na nossa natureza, nas profundezas do esgoto da existência pecaminosa, presente em mim, nele e em todas as pessoas. Disse que Jesus carregou na cruz também a culpa dele, as minhas e as de toda humanidade. Que o Senhor também havia ressuscitado e que através de Cristo ele também poderia ter uma nova vida. Que ele podia crer nisso e que isso o libertaria. Ao final da conversa também nos abraçamos.


Assim aconteceu outras tantas vezes. Tenho certeza que abracei assassinos, estupradores, estelionatários e outros inúmeros criminosos. Gente arrependida. Aos que não reconheciam suas culpas, não cabia a mim julgar, em hipótese alguma posso crer que eu sentarei ao lado de Jesus para julgar quem quer que seja! Poderia um abraço numa pessoa que cometeu um crime de assassinato causar revolta?


Essa semana muitas pessoas se chocaram com a atitude do médico Drauzio Varella, que ao visitar Suzy, uma pessoa transexual que cometeu um crime terrível, a abraçou ao se comover com o fato de ela não receber visitas há oito anos. Confesso que tive sentimentos múltiplos diante deste fato. Em primeiro lugar, pensei na família do menino assassinado por Suzy. A sua dor é legitima, sua revolta também, diante de algo monstruoso. E agradeci a Deus por haver leis neste país para fazer cumprir a justiça, ainda que mais austera com os menos favorecidos. Penso que também deve ser muito difícil superar esta dor, e me solidarizei com eles. Agradeci a Deus também por inúmeras pessoas que apoiaram esta família naqueles momentos tão difíceis.


Mas também agradeci a Deus pelo dr. Drauzio, um ateu confesso, alguém que não lê a Bíblia, “mas que a Bíblia foi lida através dele”. Alguém que sem querer saber do crime, foi tão empático quanto Cristo. O mesmo Cristo que se pôs ao lado da mulher adúltera, o mesmo Cristo que se pôs ao lado do criminoso na cruz.


O doutor Drauzio fez ecoar através da sua vida a Palavra de Jesus: "Pois eu estava com fome, e vocês não me deram comida; estava com sede, e não me deram água. Era estrangeiro, e não me receberam na sua casa; estava sem roupa, e não me vestiram. Estava doente e na cadeia, e vocês não cuidaram de mim” (Mt 25.42-43). E, com isso, dando um tapa na nossa cara, pessoas cristãs, muitas vezes seletivas na sua compreensão sobre o perdão. Por vezes esquecemos que todos carecem do perdão do Senhor. Esquecemos da palavra de Jesus que disse: “Eu, porém, lhes digo que todo aquele que se irar contra o seu irmão estará sujeito a julgamento” (Mt 5.22).


Fico pensando... muitas das pessoas cristãs que condenam a atitude de Drauzio Varella, nem sequer atentam para o fato de que nestes OITO anos, Suzy poderia estar, em virtude dos seus pecados, assim como Davi “envelhecendo os seus ossos pelos seus constantes gemidos todo o dia” (Sl 32). Quiçá clamando por liberdade de seus cativeiros! Onde estavam? “Onde estão os que te condenam?” (Jo 8.10). Acredito que estas palavras de Jesus são enigmáticas, pois não falam de lugar físico, mas de um lugar existencial. Em que situação na existência acreditam estar diante de Deus os que condenam Suzy? Onde acreditam que estão os que desejam o inferno à Suzy? Acreditam que sua situação é melhor?


Do fundo do meu coração, eu espero que a misericórdia de Deus alcance todas as pessoas envolvidas nesta dura realidade da natureza humana. Os que destilam ódio, que percebam que estão na mesma lama existencial que Suzy, e que o sacrifício de Cristo foi suficiente para perdoar a todos, como diria Lutero. Que a família continue sendo consolada, que assim como Suzy, seja abraçada, e que, ao seu tempo e se assim desejar, também perceba os benefícios do perdão. Que o dr Drauzio seja amparado e siga amparando. Quanto à Suzy, o que posso dizer com certeza é que um Juiz já bateu o martelo e já proferiu seu julgamento, proclamou a sentença sobre ela, fazendo-a cumprir a pena de seus monstruosos crimes. E, sinceramente, espero que Suzy se arrependa, assim como eu também preciso de uma vida de constante arrependimento, algo que me parece que já aconteceu, pela recente carta tornada pública. Que ela, pessoa presa, julgada e condenada, seja alcançada pela graça de Deus através de alguma pessoa cristã que tenha a compaixão de ouvir a sua confissão, falar-lhe de Jesus e, em nome dele, perdoar-lhe os seus pecados.


O sacrifício de Jesus não combina com perdão seletivo. Combina com reconhecimento. Assim como o apóstolo Paulo reconheceu: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior” (1Tm 1.15). Assim como reconheceu Manassés, o assassino que “queimou o seu filho em sacrifício, adivinhava pelas nuvens, era agoureiro e tratava com médiuns e feiticeiros. Fazia continuamente o que era mau aos olhos do Senhor, para o provocar à ira” (2Rs 21.6), e “ angustiado, suplicou ao Senhor, seu Deus, e muito se humilhou diante do Deus de seus pais. Orou ao Senhor, e o Senhor se tornou favorável para com ele, [...]. Então Manassés reconheceu que o Senhor é Deus” (2Cr 33.12-13).
E quem sabe se as personagens desta triste e angustiante história da natureza humana realmente se arrependeram? Como já foi dito anteriormente, simplesmente pelo fato de ser uma pessoa cristã, não me sinto capacitado a acreditar que me sentarei ao lado de Jesus para julgar quem quer que seja.


O que eu sei é que meu Senhor na cruz não questionou o criminoso sobre seu crime hediondo, para saber se era possível perdoar. Só Cristo é capaz de perceber o arrependimento sincero. A nós só cabe crer no sacrifício suficiente de Jesus e reconhecer que dos piores pecadores também somos parte. E que todos necessitamos da misericórdia do Senhor. Este Senhor que acolhe diante do reconhecimento, dizendo: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso”.

 
Diego Ernesto Petry
Pastor
Concórdia, SC

REDAÇÃO: este artigo não representa, necessariamente, a opinião da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) sobre este assunto. 

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