Durante quase um ano fiz visitas aos internos de
um Presídio Estadual no Rio Grande do Sul. De quinze em quinze dias, domingo de
manhã, estávamos lá. Eu e alguns colegas acompanhados do querido Padre Ed Benya
que nos abriu as portas para esta experiência. Chegávamos, “Father” Ed fazia o
sinal da cruz, assinávamos o termo de compromisso, sem revista, entrávamos e
quando a maciça porta de ferro fechava nas nossas costas, sentíamos um pouco do
que é estar preso
Só quem esteve lá dentro sabe o que isso
significa. Condições precárias, doenças, abandono, depressão e saudade. Quando
passávamos pelas celas volta e meia ouvíamos alguém gritar: “Liberdade aos
cativos!”. Embora desejassem ser libertados das grades, e muitos que lá estavam
nem sequer haviam sido julgados, pacientes com prisão provisória há mais de
três anos, era outra liberdade que levávamos para estes seres humanos. A
libertação do cativeiro de suas culpas diante de Deus, a libertação através de
um abraço, de uma palavra amiga, de uma palavra evangélica de misericórdia aos
que reconheciam as suas culpas.
Muitos diziam-se injustiçados e inocentes, algo
comum nas cadeias mundo afora. Acredito que alguns deles realmente estão presos
injustamente, sem um julgamento justo, nem todos conseguem pagar um advogado.
Mas a grande maioria está lá pagando por seus crimes, alguns terríveis,
monstruosos, comuns aos psicopatas. Por isso mesmo, nunca perguntava por seus
crimes, nunca emitia qualquer julgamento, pois um juiz já havia batido o
martelo e feito cumprir a lei pelos crimes cometidos. Não cabia a mim, não cabe
a ninguém julgar quem já foi julgado.
Neste período convivi com um detento que
chamarei de Carlos. Passamos o ano inteiro conversando sobre diversas coisas,
mas Carlos nunca se abria. Nunca dizia o motivo pelo qual estava lá. No último
dia deste período de um ano, e sabendo disso, que provavelmente não voltaríamos
a nos ver, Carlos se abriu comigo, contou-me seu crime. Confesso que fiquei
abismado com o crime cometido, estou certo que deixaria muitos de “cabelos em
pé”.
Coloquei-me no lugar da família que Carlos tanto
fez sofrer, senti um nó no estômago, pois pensei: e se fosse comigo? Mas ao
final da “confissão” perguntei a ele qual era o seu sentimento a respeito do
que cometera, ele olhou para baixo e disse: “se eu pudesse voltar no meu
caminho, não faria tanta gente sofrer. Mas não posso voltar, preciso seguir,
sinto muito pelo que fiz”. Lembro que falei do perdão de Jesus, como Jesus
mergulhou na nossa natureza, nas profundezas do esgoto da existência
pecaminosa, presente em mim, nele e em todas as pessoas. Disse que Jesus
carregou na cruz também a culpa dele, as minhas e as de toda humanidade. Que o
Senhor também havia ressuscitado e que através de Cristo ele também poderia ter
uma nova vida. Que ele podia crer nisso e que isso o libertaria. Ao final da
conversa também nos abraçamos.
Assim aconteceu outras tantas vezes. Tenho
certeza que abracei assassinos, estupradores, estelionatários e outros inúmeros
criminosos. Gente arrependida. Aos que não reconheciam suas culpas, não cabia a
mim julgar, em hipótese alguma posso crer que eu sentarei ao lado de Jesus para
julgar quem quer que seja! Poderia um abraço numa pessoa que cometeu um crime
de assassinato causar revolta?
Essa semana muitas pessoas se chocaram com a
atitude do médico Drauzio Varella, que ao visitar Suzy, uma pessoa transexual
que cometeu um crime terrível, a abraçou ao se comover com o fato de ela não
receber visitas há oito anos. Confesso que tive sentimentos múltiplos diante
deste fato. Em primeiro lugar, pensei na família do menino assassinado por
Suzy. A sua dor é legitima, sua revolta também, diante de algo monstruoso. E
agradeci a Deus por haver leis neste país para fazer cumprir a justiça, ainda
que mais austera com os menos favorecidos. Penso que também deve ser muito
difícil superar esta dor, e me solidarizei com eles. Agradeci a Deus também por
inúmeras pessoas que apoiaram esta família naqueles momentos tão difíceis.
Mas também agradeci a Deus pelo dr. Drauzio, um
ateu confesso, alguém que não lê a Bíblia, “mas que a Bíblia foi lida através
dele”. Alguém que sem querer saber do crime, foi tão empático quanto Cristo. O
mesmo Cristo que se pôs ao lado da mulher adúltera, o mesmo Cristo que se pôs
ao lado do criminoso na cruz.
O doutor Drauzio fez ecoar através da sua vida a
Palavra de Jesus: "Pois eu estava com fome, e vocês não me deram comida;
estava com sede, e não me deram água. Era estrangeiro, e não me receberam na
sua casa; estava sem roupa, e não me vestiram. Estava doente e na cadeia, e vocês
não cuidaram de mim” (Mt 25.42-43). E, com isso, dando um tapa na nossa cara,
pessoas cristãs, muitas vezes seletivas na sua compreensão sobre o perdão.
Por vezes esquecemos que todos carecem do perdão
do Senhor. Esquecemos da palavra de Jesus que disse: “Eu, porém, lhes digo que
todo aquele que se irar contra o seu irmão estará sujeito a julgamento” (Mt 5.22).
Fico pensando... muitas das pessoas cristãs que
condenam a atitude de Drauzio Varella, nem sequer atentam para o fato de que
nestes OITO anos, Suzy poderia estar, em virtude dos seus pecados, assim como
Davi “envelhecendo os seus ossos pelos seus constantes gemidos todo o dia” (Sl
32). Quiçá clamando por liberdade de seus cativeiros! Onde estavam? “Onde estão
os que te condenam?” (Jo 8.10). Acredito que estas palavras de Jesus são enigmáticas,
pois não falam de lugar físico, mas de um lugar existencial. Em que situação na
existência acreditam estar diante de Deus os que condenam Suzy? Onde acreditam
que estão os que desejam o inferno à Suzy? Acreditam que sua situação é melhor?
Do fundo do meu coração, eu espero que a
misericórdia de Deus alcance todas as pessoas envolvidas nesta dura realidade
da natureza humana. Os que destilam ódio, que percebam que estão na mesma lama
existencial que Suzy, e que o sacrifício de Cristo foi suficiente para perdoar
a todos, como diria Lutero. Que a família continue sendo consolada, que assim
como Suzy, seja abraçada, e que, ao seu tempo e se assim desejar, também
perceba os benefícios do perdão. Que o dr Drauzio seja amparado e siga
amparando. Quanto à Suzy, o que posso dizer com certeza é que um Juiz já bateu
o martelo e já proferiu seu julgamento, proclamou a sentença sobre ela,
fazendo-a cumprir a pena de seus monstruosos crimes. E, sinceramente, espero
que Suzy se arrependa, assim como eu também preciso de uma vida de constante
arrependimento, algo que me parece que já aconteceu, pela recente carta tornada
pública. Que ela, pessoa presa, julgada e condenada, seja alcançada pela graça
de Deus através de alguma pessoa cristã que tenha a compaixão de ouvir a sua
confissão, falar-lhe de Jesus e, em nome dele, perdoar-lhe os seus pecados.
O sacrifício de Jesus não combina com perdão
seletivo. Combina com reconhecimento. Assim como o apóstolo Paulo reconheceu:
“Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior” (1Tm
1.15). Assim como reconheceu Manassés, o assassino que “queimou o seu filho em
sacrifício, adivinhava pelas nuvens, era agoureiro e tratava com médiuns e
feiticeiros. Fazia continuamente o que era mau aos olhos do Senhor, para o
provocar à ira” (2Rs 21.6), e “ angustiado, suplicou ao Senhor, seu Deus, e
muito se humilhou diante do Deus de seus pais. Orou ao Senhor, e o Senhor se
tornou favorável para com ele, [...]. Então Manassés reconheceu que o Senhor é
Deus” (2Cr 33.12-13).
E quem sabe se as personagens desta triste e
angustiante história da natureza humana realmente se arrependeram? Como já foi
dito anteriormente, simplesmente pelo fato de ser uma pessoa cristã, não me
sinto capacitado a acreditar que me sentarei ao lado de Jesus para julgar quem
quer que seja.
O que eu sei é que meu Senhor na cruz não
questionou o criminoso sobre seu crime hediondo, para saber se era possível
perdoar. Só Cristo é capaz de perceber o arrependimento sincero. A nós só cabe
crer no sacrifício suficiente de Jesus e reconhecer que dos piores pecadores
também somos parte. E que todos necessitamos da misericórdia do Senhor. Este
Senhor que acolhe diante do reconhecimento, dizendo: “Ainda hoje estarás comigo
no paraíso”.
Diego Ernesto Petry
Pastor
Concórdia, SC
REDAÇÃO: este artigo não representa,
necessariamente, a opinião da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) sobre
este assunto.