A
atual pandemia do coronavírus ou COVID-19 traz à lembrança a maior de todas as
pandemias que já assolou a humanidade: a peste negra, ou simplesmente a peste,
do século 14. Embora existam enormes e evidentes diferenças entre aquele século
e o nosso, também se constatam surpreendentes semelhanças, especialmente, mas
não só, nas atitudes das pessoas diante da doença. Neste artigo, além do
contexto histórico, queremos buscar as orientações e práticas do líder da
Reforma da igreja no século XVI, dr. Martinho Lutero.
Pandemia da Idade Média
e hoje
Uma
primeira diferença é que a pandemia da Idade Média foi causada por uma bactéria
(a Yersinia pestis), e a atual, por um vírus. Outras diferenças incluem
uma mortalidade muito maior da peste negra do que a provocada, até agora, pela
COVID-19. Calcula-se que a bactéria causou a morte de 75 a 200 (segundo alguns,
até 300) milhões de pessoas no mundo todo. Na Europa, a peste dizimou de um
terço à metade da população total. Diferentemente de hoje, quando todos “sabem”
que a doença é causada por um vírus, ninguém sabia o que causava a peste.
Falava-se em ar envenenado, em miasmas, névoas pegajosas e assim por diante.
Alguns pensavam que os judeus tinham envenenado os poços ou fontes de água dos
cristãos e, em razão disso, os judeus foram perseguidos. A explicação
“científica” da época, fornecida pela faculdade de medicina da universidade de
Paris em 1348, era de que a peste resultava de uma conjunção de planetas
ocorrida no dia 20 de março de 1345. Mas o povo em geral via a peste como um
castigo de Deus. As condições de moradia, a falta de higiene, o consumo de água
contaminada, a falta de saneamento básico nas cidades, a ignorância e a
superstição favoreceram a rápida proliferação da peste.
Já
se sabia então que a doença era contagiosa e se adotava o isolamento dos
doentes. Mas o pânico provocado pela alta taxa de mortalidade da peste levava
grande parte da população a fugir das cidades atingidas, deixando para trás
mesmo os familiares mais próximos que apresentassem sintomas da doença. Alguns
praticavam o isolamento com dietas leves e exercícios moderados. Outros
tentavam livrar-se da peste buscando o prazer desenfreado com bebidas nas
tavernas, diversões e farras, rindo e procurando fazer pouco caso da doença.
Houve uma grande decadência moral e criaram-se situações caóticas devido à
morte de muitas autoridades civis e religiosas. Algumas pessoas tinham a noção de
que a sujeira e falta de higiene favoreciam a propagação da peste. Assim, por
exemplo, na cidade de Nürnberg, na Alemanha, foram adotadas medidas de
saneamento tais como a pavimentação das ruas, o recolhimento do lixo e o
incentivo à higiene pessoal incluindo os banhos que, em geral, costumavam ser
tomados apenas duas ou três vezes por ano naquela época e que alguns até
consideravam prejudiciais à saúde.
A manifestação e
transmissão da peste negra
A
peste negra se manifesta de três formas: a bubônica, a pneumônica e a
septicêmica. A bubônica, a mais comum, deriva seu nome dos bubões ou inchaços
dos nódulos linfáticos que podem chegar ao tamanho de um ovo. O nome ‘peste
negra’ deriva das manchas negras que podem aparecer em várias partes do corpo
do doente devido a hemorragias internas. A forma pneumônica ataca os pulmões e
a septicêmica infecta a corrente sanguínea. A doença é transmitida ao ser
humano pelas picadas de pulgas de ratos. Posteriormente, a transmissão também
pode ocorrer a partir do contato com uma pessoa infectada. A doença é altamente
contagiosa e matava a maioria dos infectados em poucos dias. Tudo o que sai do
corpo dos doentes das formas pneumônica e bubônica tem um cheiro forte e altamente
repugnante. Por esse motivo, e pelo medo do contágio, as pessoas evitavam o
contato e a proximidade com os doentes e esses, muitas vezes, morriam de forma
solitária e sem nenhuma assistência. A
ignorância quanto ao modo de transmissão da doença deixava as pessoas ainda
mais apavoradas. Pensava-se, inclusive, que até o simples fato de olhar nos
olhos de um doente poderia transmitir a doença.
O impacto social da
peste na Europa
O
primeiro e maior surto da peste manifestou-se na Europa entre os anos de 1346 e
1352. Ela surgiu na Ásia e, acredita-se, que foi trazida à Europa por navios
mercantes genoveses que trafegavam pelo Mar Mediterrâneo. Desconhecendo a causa
da doença, os médicos prescreviam os remédios mais exóticos e caros que, porém,
se revelavam completamente ineficientes. A peste se propagou pela Europa em
ondas sucessivas ao longo de aproximadamente quatro séculos.
A
persistente presença da morte em larga escala ao seu redor, impactou a mente do
ser humano do final da Idade Média de forma profunda e desestabilizadora. Até o
tema da arte passou a ser a morte. Alimentados por uma teologia do mérito
humano que enfatizava as boas obras como meio de satisfazer um Deus exigente,
as pessoas viviam aterrorizadas com a ideia da morte iminente que as colocaria
diante do Cristo juiz que poderia destiná-las ao céu ou ao inferno. Com isso,
cresceu a invocação dos santos e proliferaram as mais diversas manifestações
religiosas como peregrinações, jejuns, flagelações do corpo e aquisição de
indulgências, entre outras. Mas essa religiosidade externa revelou-se como
incapaz de trazer verdadeira paz à consciência aflita. O jovem Lutero é um
exemplo desta busca insistente, mas infrutífera, de um Deus misericordioso,
antes que o encontrasse no evangelho das Escrituras Sagradas.
Lutero e a pandemia
Ao
longo da vida de Lutero, manifestaram-se diversos ciclos da peste negra na
Alemanha. Por exemplo, em 1505, quando Lutero iniciou seus estudos na faculdade
de direito em Erfurt e posteriormente ingressou no mosteiro agostiniano local,
a peste ceifou a vida de diversas pessoas da faculdade de Erfurt e,
posteriormente, também a de dois irmãos de Lutero. Em 1516, há registro de que
a peste ameaçava chegar novamente a Wittenberg. Outros surtos da doença se
manifestaram em Wittenberg em 1527, 1535 e 1538-39.
Em
1527, quando a chegada da peste se evidenciou em Wittenberg, o príncipe-eleitor
da Saxônia, João, o Constante, ordenou a transferência da universidade local
para Jena – uma cidade localizada a aproximadamente 170 quilômetros de
Wittenberg. Mas Lutero, juntamente com o pastor João Bugenhagen e os capelães
Jorge Rörer e João Mantel, decidiram permanecer na cidade. Lutero acolheu a
todos em sua casa – o antigo mosteiro agostiniano – e a transformou num
hospital, apesar de sua esposa Catarina estar nos últimos meses de gravidez e
seu primogênito Hans também estivesse doente. A esposa de Rörer faleceu de
peste na casa de Lutero, e outros doentes se recuperaram ali. Lutero continuou
lecionando para um pequeno grupo de estudantes que ficara em Wittenberg, embora
se queixasse de que sua própria doença não permitia que trabalhasse como
gostaria. Ele estivera bastante debilitado e doente fisicamente, e depois
mergulhou numa profunda depressão. Lutero também permaneceu em Wittenberg
quando a peste chegou à cidade em 1535 e 1538, sempre estendendo sua ajuda a
pessoas necessitadas ou abandonadas.
As
recomendações e os conselhos de Lutero parecem, em sua maioria, bastante
atuais. Eles continuam válidos porque são provenientes da Palavra de Deus.
Vivência
da fé em meio à pandemia
Quando
a peste assolava várias partes da Alemanha, em 1527, um pastor de Breslau, o
Dr. João Hess, pediu insistentemente a opinião de Lutero sobre se era correto,
ou não, fugir de uma praga mortal. Lutero inicia sua carta de resposta
registrando a polarização existente em relação à questão. Algumas pessoas
pensavam que não se precisava e nem se devia fugir de uma praga mortal. Para
estas, a morte é um castigo de Deus por nossos pecados e devemos nos submeter a
Deus e à sua punição. Fugir seria uma falta de fé em Deus. Outros eram da
opinião de que se poderia fugir, especialmente se a pessoa não ocupasse nenhum
cargo público.
Lutero
afirma que, por mais elogiável que a primeira opinião seja, não se pode esperar
o mesmo pensamento e atitude de todos. Há diferenças na fé dos cristãos: uns
são fortes na fé, outros têm uma fé fraca, e Cristo não quer que os fracos
sejam abandonados (Rm 15.1 e 1Co 12.22). Se a pessoa não ocupa cargo público e
não há pessoas que dependem de seus cuidados, então ela está livre para decidir
entre fugir ou permanecer. Tentar salvar a própria vida e cuidar do corpo é uma
tendência natural implantada por Deus (Ef 5.29; 1Co 12.21-26). Lutero cita
vários personagens bíblicos que procuraram salvar suas vidas quando estas
corriam perigo: Abraão, Isaque, Jacó, Davi, o profeta Urias, Elias, Moisés e
outros (Gn 22.13; 26.7; 27.43-45; 1Sm 19.10-17; 2Sm 15.14; Jr 26.21; Êx 2.15;
Ez 14.21).
Conselhos para diferentes funções e ações
Lutero
argumenta contra a afirmação de que não se deve fugir de um castigo de Deus
dizendo que, nesse caso, também não se deveria fugir de uma casa em chamas
porque o fogo também seria um castigo de Deus. Também não se deveria comer e
beber ao sentir fome e sede, mas esperar que essas punições parassem por si
mesmas. Em última análise, não se deveria, então, nem mesmo orar a petição
“livra-nos do mal”. Ao contrário, diz Lutero, devemos orar contra toda forma de
mal e nos proteger contra ela da melhor maneira possível para não agir contra a
vontade de Deus. Contudo, se for da vontade de Deus que o mal venha sobre nós e
nos destrua, nenhuma de nossas precauções vai nos ajudar.
Mas,
argumenta Lutero, existem pessoas que não devem fugir, mas devem permanecer em
seus postos mesmo quando correm risco de vida. Entre essas pessoas, ele inclui
os pastores (Jo 10.11). Pois quando as pessoas estão morrendo, então é que elas
mais precisam de atendimento espiritual para fortalecer e confortar suas
consciências por meio da Palavra e do sacramento, para que possam superar a
morte pela fé. Mas, numa situação em que há vários pastores num local, apenas
precisam permanecer os que são necessários para realizar o atendimento
espiritual, os demais podem sair para não se expor desnecessariamente ao perigo
(At 9.25; 19.30).
Igualmente,
autoridades e funcionários públicos devem permanecer em seus postos para
governar e proteger o povo, impedindo que o caos se estabeleça (Rm 13.4). Se,
porém, devido à sua fraqueza, quiserem fugir, eles só poderão fazê-lo se
deixarem substitutos capazes em seu lugar.
A
mesma regra aplicada a pastores e autoridades civis também vale para todos os
que estão numa relação mútua de serviço ou dever: empregados e patrões, pais e
filhos, funcionários públicos como médicos, policiais e outros. Estes também
não podem abandonar os que dependem deles sem haver algum acordo ou sem
providenciar um substituto. Da mesma forma, ninguém pode fugir abandonando
órfãos ou outras pessoas necessitadas de cuidado sem providenciar alguém que
cuide deles.
Lutero
prossegue na sua argumentação dizendo que o amor cristão nos obriga a ajudar o
próximo em todas as suas necessidades. “Alguém que não vai querer ajudar ou
apoiar os outros a menos que possa fazê-lo sem arriscar sua própria segurança
ou propriedade, nunca ajudará seu próximo.” Continua ele dizendo que a peste,
ou a punição de Deus, não veio apenas como punição pelos nossos pecados, mas
também para testar nossa fé e amor. Nossa fé é testada para vermos e
experimentarmos como está nossa relação com Deus. E nosso amor é testado para
percebermos como está nossa disposição em servir ao nosso próximo conforme a
Escritura o ensina (1Jo 3.16).
O
diabo tenta impedir que ajudemos nosso próximo, criando em nós horror e nojo
diante da pessoa doente. Devemos resistir a seus ataques, sabendo que ajudar o
próximo é algo que é muito agradável a Deus e a todos os seus anjos. Também
resistimos ao diabo recorrendo à poderosa promessa com que Deus encoraja aos
que servem aos necessitados: “Bem-aventurado é aquele que ajuda os
necessitados, o Senhor o livra no dia do mal” (Sl 41.1-3; Sl 91.11-13).
Cuidado para não tentar a Deus
Por
outro lado, diz Lutero, também existem pessoas que tentam a Deus ao agir de
forma precipitada e imprudente, não tomando cuidados para proteger-se da morte
e da peste. Tais pessoas não tomam remédios e não evitam lugares e pessoas
infectadas, levam a doença na brincadeira, tentando mostrar que não têm medo
dela. Diz Lutero: “Isto não é confiar em Deus, mas tentá-lo. Deus criou
medicamentos e nos deu inteligência para proteger e cuidar bem de nossos corpos
para que possamos viver em boa saúde”. Ele continua dizendo que a pessoa que
não toma os devidos cuidados e assim prejudica seu corpo, corre o risco de
cometer suicídio aos olhos de Deus. E, se essa pessoa ficar doente e depois
contagiar outras pessoas, ela será responsável perante Deus por assassinatos.
Lutero
diz que um cristão deve pensar assim: “Pedirei a Deus que misericordiosamente
nos proteja. Então vou fumigar, ajudar a purificar o ar, dar remédios e tomá-los.
Evitarei lugares e pessoas onde minha presença não é necessária para não me
contaminar e, desta forma, talvez me infectar e contagiar outros e assim causar
sua morte como resultado de minha negligência. Se Deus quiser me levar ele
certamente me encontrará e eu terei feito o que ele esperava de mim e por isso
não sou responsável pela minha própria morte ou pela morte de outros”.
Isolamento social e o cuidado com os
contaminados
O
reformador defende o isolamento de pessoas contaminadas pela peste, mas estas
precisam receber a devida assistência e não devem ser abandonadas. Por outro
lado, pessoas contaminadas devem tomar cuidado para não transmitir a doença a
outros. Se um doente for tão perverso a ponto de procurar contagiar outros
intencionalmente, este deve ser retirado de circulação pelas autoridades.
Lutero ainda acrescenta que, em Wittenberg, a doença foi causada pela sujeira,
e assim a preguiça e o descuido de alguns levou à contaminação de outros.
As
recomendações e os conselhos de Lutero parecem, em sua maioria, bastante
atuais. Eles continuam válidos, porque são provenientes da Palavra de Deus.
Assim
como todo o mal existente no mundo, a peste negra e também a COVID-19 resultam
da entrada do pecado no mundo. Mas a Palavra de Deus nos aponta para o amor de
Deus e nos concede o perdão obtido por Cristo.
Um teste para a fé e o amor ao próximo
Também
a COVID-19 testa nossa fé em Deus e nosso amor ao próximo. Nosso próximo
continua precisando de nós, embora tenhamos hoje mais instituições públicas e
privadas especializadas no cuidado dos doentes e acolhimento dos necessitados
do que no século 16. Mas há coisas que hospitais e outras instituições não
fazem: oferecer ajuda para comprar remédios e alimentos para pessoas que compõe
grupos de risco, telefonar para essas pessoas para levar a elas o conforto e a
orientação da Palavra de Deus, etc. Cada cristão precisa se perguntar como ele
pode ajudar os outros dentro de sua vocação.
Ainda
continua valendo a recomendação sobre o cuidado e as medidas preventivas que
temos que tomar para procurar preservar a nossa vida e a vida do próximo: ter
hábitos saudáveis, cuidar da higiene e limpeza e tomar remédios quando
necessário.
Assim
como nos dias de Lutero, ainda hoje precisamos decidir com sabedoria e
prudência quando é importante ficar em casa e quando é preciso expor-se ao
risco do contágio porque o próximo precisa de nós. Dessa forma, não seremos nem
temerários e nem omissos.
Confiando
nas promessas de Deus, entregamos nossa vida em suas mãos misericordiosas,
pedindo sua proteção em todas as circunstâncias desta vida e a preservação na
fé em Jesus Cristo para obtermos a vida eterna.