Talvez você se lembre (como eu lembro)
da surpresa ao ouvir falar, pela primeira vez, provavelmente na instrução de confirmandos
(aulas de catecismo), a respeito de um “Ofício das Chaves”. Chaves? Que chaves
seriam essas? E ofício, o que é isso? (Houve uma época em que, vendo um diretor
de escola andar com um enorme molho de chaves, brincávamos, dizendo que exercia
o Ofício das Chaves. (Brincadeiras à parte, Ofício das chaves é algo bem sério).
A referência às chaves aparece numa
leitura de evangelho que foi feita, na igreja, no final de agosto deste ano.
Trata-se de Mateus 16.13-20. No versículo 19, Jesus diz a Pedro: “Eu lhe darei
as chaves do Reino dos Céus; o que você ligar na terra terá sido ligado nos
céus; e o que você desligar na terra terá sido desligado nos céus” (NAA). Numa
leitura de evangelho prevista para setembro (Mt 18.1-20), as chaves não
aparecem diretamente, embora sua função seja citada. Nesse texto de Mateus 18, Jesus
se dirige à sua igreja, dizendo: “Em verdade lhes digo que tudo o que ligarem
na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligarem na terra terá sido
desligado nos céus” (v. 19).
Chaves
que ligam e desligam?
A
palavra chave lembra a ação de chavear ou trancar. Chaves abrem e fecham. Num
sentido figurado ou não literal, a chave é um “meio de acesso”. Pedro, como
representante dos apóstolos, recebeu as chaves do Reino dos Céus. Esse “Reino
do Céu” não é uma designação pura e simples da “morada de Deus”, porque, nos evangelhos,
o Reino dos céus ou de Deus não pode ser separado da pessoa de Jesus. Mas a
entrada no Reino dos céus (que equivale a “estar em Cristo” pela fé ou “ter
vida eterna”) certamente nos levará ao céu. Pedro também não está literalmente
sentado na porta do céu, recebendo a alma dos que morreram ou controlando o
tempo e a temperatura! Mas se o apóstolo Pedro recebeu as chaves do Reino dos
Céus, isso só pode significar que o acesso a esse Reino se dá pelo ofício
apostólico, ou seja, pela pregação do evangelho.
Pois
bem, parece evidente que ter as chaves é controlar o acesso. Mas que história
de ligar e desligar é essa? Isso tem a ver com as chaves do Reino dos céus? Se nos
guiarmos pelas traduções bíblicas, parece que não. As traduções tendem a
separar o ato de ligar e desligar do ato de receber as chaves. Costumam dizer
assim: “Eu lhe darei as chaves... O que você ligar na terra...”. Mas o texto
original não faz esse corte, dizendo, num só fôlego, “eu lhe darei as chaves...
e o que você ligar...”. Portanto, ligar e desligar tem algo a ver com o
fato de se ter as chaves.
Mas
chaves ligam e desligam? A chave do automóvel é usada para “ligar o carro”. Mas
não é a isso que se refere o ligar e desligar das palavras de Jesus. No texto
aparecem os verbos “amarrar” (geralmente traduzido por ligar) e “soltar”
(traduzido por desligar). Isso, em especial o ato de “amarrar”, parece ter
menos relação ainda com uma chave. Mas deve haver uma conexão. É o que queremos
ver.
Diferentes formas de interpretação
A
maioria dos biblistas entende que ligar e desligar se relaciona com a prática
judaica (ou rabínica) de proibir e permitir. A Bíblia na Linguagem de Hoje, ao
lado de outras traduções, reflete essa exegese: “O que você proibir... o que
você permitir”. Mas isso parece não ter nada a ver com o uso de uma chave. E
soa estranho dizer que aquilo que Pedro permite na terra “será permitido no
céu”! O que se poderia proibir e permitir no céu?! Como Pedro poderia fazer
isso?
Mais
recentemente surgiu a explicação de que ligar seria aplicar um texto bíblico a determinada
situação. Desligar, por sua vez, seria desvincular um texto bíblico de uma
situação, ou seja, seria dizer que uma palavra bíblica, embora eternamente
válida, não se aplica neste ou naquele caso. Um exemplo seria “não ajuntar
tesouros na terra”, que, ao ser “desligado”, nos levaria a dizer que isso não
se aplica a fazer uma poupança para custear a educação dos filhos ou para viver
mais tranquilo os dias de aposentadoria. Mas, de novo, isso parece não ter nada
a ver com a chave, que é “algo usado para trancar”, e não para “aplicar”. E, no
contexto em que Jesus fala, especialmente em Mateus 18, não está em discussão a
interpretação da Bíblia, e sim o tratamento a ser dado a um irmão que peca!
Por
isso, a melhor alternativa ainda é deixar que as palavras de Jesus no Evangelho
de João expliquem esse ligar e desligar. Jesus disse a seus apóstolos: “Se de
alguns vocês perdoarem os pecados, são-lhes perdoados; mas, se os retiverem,
são retidos” (Jo 20.23). Assim, ligar (ou “amarrar”) é reter pecados; é deixar
de perdoá-los, fazendo com que fiquem com a pessoa. E desligar (ou “soltar”) é
perdoar pecados; é remover pecados, deixando que sejam levados embora pelo
Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (Jo 1.29).
O Ofício das Chaves no Catecismo
Menor
Volto à instrução de confirmandos,
mencionada no início, e que remete ao Catecismo. No Catecismo Menor, a quinta
parte é “O Ofício das Chaves”. Diante da pergunta sobre o que é o Ofício das
Chaves, aprendemos a responder: “É o poder peculiar que Cristo deu à sua Igreja
na terra para perdoar os pecados aos pecadores penitentes e reter os pecados
aos impenitentes, enquanto não se arrependerem”. E a base para isso, no
Catecismo, é o que já foi citado, a saber, as palavras de Jesus em João 20.23.
Essa quinta parte do Catecismo Menor
não foi escrita por Lutero. Ele colocou naquele lugar uma pequena liturgia de
confissão e absolvição. (Ver o Catecismo Menor no Livro de Concórdia). Essa
“liturgia” destoa do resto do Catecismo Menor, pois não é algo que pode ser estudado
ou memorizado. Assim, discípulos de Lutero, depois da morte dele, redigiram
isso que aparece em nosso Catecismo hoje. É claro que as palavras foram tiradas
dos escritos de Lutero, especialmente de um tratado sobre “As Chaves” (de 1530)
e dos Artigos de Esmalcalde (de 1537). Nesses Artigos de Esmalcalde (3ª parte,
artigo VII), Lutero diz que “as chaves são um ofício e poder dado à igreja por
Cristo para ligar e desligar os pecados, não só os pecados grosseiros e bem
conhecidos, mas também os sutis, secretos, que apenas Deus percebe...”.
As Chaves foram dadas a quem?
Alguém
poderá responder rapidamente que “as chaves” (essa autoridade para reter e
perdoar pecados) foram dadas a Pedro. Está correto (Mateus 16). Mas elas foram
dadas também a todos os apóstolos (João 20). E foram dadas à Igreja (Mateus
18). Ou seja, as chaves foram dadas três vezes, e uma entrega não revoga a
entrega anterior. Por isso, diante da pergunta sobre quem pode perdoar pecados,
nossa primeira resposta será: o pastor. E ele faz isso, no ministério público. Mas
Lutero enfatiza que as chaves são um ofício e poder dado por Cristo à greja!
Por isso, perdoar pecados é algo que cabe à igreja (ou à comunidade, como Lutero
gostava de se expressar). No escrito sobre “As Chaves”, de 1530, Lutero lembra
o texto de 1Coríntios 5 (e poderia ter lembrado 2Co 2), onde a tarefa de lidar
com o irmão que errou cabe à igreja. Lutero também questiona o perfeccionismo
daqueles que afirmam que um crente não pode pecar. Lutero aponta para o fato de
que Jesus disse, em Mateus 18.15: “Se o seu irmão pecar...”).
O ensino de Lutero
No tratado sobre “As Chaves” (ainda
não traduzido ao português), Lutero comenta os textos de Mateus 16 e Mateus 18.
Ele liga as chaves à Palavra de Deus, dizendo: “Onde a palavra de Deus não se
faz presente, ali também não existem as chaves” (WA 30/II, 495). Com um olhar
atento para o texto, destaca que Jesus disse “tudo o que ligarem na
terra terá sido ligado nos céus”, ou seja, não apenas “algumas coisas” ou
“alguns pecados”. Ao comentar a expressão “terá sido desligado nos céus”, o
Reformador escreve: “Note que Cristo promete com absoluta clareza que será
ligado e desligado o que nós ligamos e desligamos na terra. Ele não diz: ‘O que
eu ligo e desligo no céu, isso vocês também devem ligar e desligar na
terra...’. Quando poderíamos descobrir o que Deus liga ou desliga no céu?
Nunca. E assim as chaves não teriam utilidade nenhuma. [...] Mas ele diz o
seguinte: ‘Se vocês ligam e desligam na terra, eu vou fazer o mesmo junto com vocês,
ligando e desligando no céu. Se vocês puserem as chaves em ação, eu vou fazer o
mesmo. Sim, se vocês fizerem, estará feito, e não será necessário que eu faça
de novo. O que vocês ligarem e desligarem, isso eu não vou refazer ou desfazer,
mas estará ligado e desligado sem que eu tenha de refazer. Será uma só ação,
minha e de vocês, e não duas ações; será uma chave única, minha e de vocês, e
não uma chave dupla. Vocês fazem a parte de vocês, e a minha já terá sido
feita. Se vocês ligarem e desligarem, eu já terei ligado e desligado” (WA
30/II, 497).
Lutero insiste em dizer que não
devemos procurar as chaves no céu ou em outro lugar. Reformula as palavras de
Jesus, fazendo com que ele diga: “Você vai encontrar essas chaves na boca de
Pedro; foi ali que eu as coloquei. A boca de Pedro é a minha boca, e a língua dele
é o meu estojo de chaves. O ofício dele é meu ofício; o ofício de ligar que ele
exerce eu exerço também, o ofício de desligar que ele exerce eu exerço também, as
chaves dele são as minhas chaves, não tenho outras... O que elas ligam está
ligado, o que elas desligam está desligado”.
Basicamente
lei e evangelho
Mais ao final de seu tratado, Lutero
explica que “a chave que liga é o poder ou ofício de condenar o pecador, enquanto
ele não quer se arrepender, com uma sentença pública que o condena à morte eterna
por meio de afastamento da cristandade. [...] A chave que desliga é o poder ou
ofício que livra o pecador de seus pecados, se ele os confessa e se arrepende,
e que novamente lhe promete vida eterna. [...] A chave que liga efetua a obra
da lei. Ela é boa e necessária para o pecador na medida em que lhe presta um
serviço, revela a ele o seu pecado, lembra-lhe o temor de Deus, amedronta-o e o
move ao arrependimento e não à perdição. A chave que desliga efetua a obra do
evangelho. Chama à graça e à misericórdia de Deus, consola e promete vida e
salvação por meio do perdão de pecados”. (WA 30/II, 503)
Lutero também lembra que não se deve usar
uma chave sem a outra. (Dizemos que é sempre lei e evangelho.) E as
chaves, cabe repetir, podem ser usadas e são usadas por pregadores (no sermão),
por pastores (na absolvição, no cuidado pastoral, na administração do batismo e
da santa ceia) e por outros cristãos (“através de mútuo colóquio e consolação
dos irmãos”, como Lutero escreve nos Artigos de Esmalcalde, 3ª parte, Artigo
IV). Sim, você, mesmo não sendo pastor, pode admoestar e perdoar seu irmão e
sua irmã! Faz parte do “Ofício das Chaves”.
Assine e leia o Mensageiro Luterano