Tem-se falado muito sobre melancolia nas últimas semanas.
Acentuou-se a melancolia como doença, tradição que vem de Hipócrates; o pai da
medicina atuou no V século antes da nossa era. Hipócrates considerava a bile (kholé)
negra (mélan) como um dos quatro humores que irrigavam o organismo, a
bile amarela produzia expressões de fúria; combustão orgânica excessiva era
responsável por um estado patológico, a bile negra; a terapêutica do médico
grego consistia em abrandar o fogo orgânico: banhos frios, movimentos lentos, abstenção
de bebida alcoólica, alimentação moderada sem sal nem açúcar. A doença
provocava rompimento de vínculos sociais, desinteresse pela vida, visões
aterradoras, nos casos mais graves levava ao suicídio. Os conhecimentos do
comportamento psicofísico avançaram muito; a melancolia passou à competência de
neurologistas, psiquiatras e psicanalistas. Freud separa melancolia e luto. O
luto, provocado pela perda de uma pessoa querida, é gradativamente superado
pela escolha de alguém que corrija a perda. A melancolia, causada pela ausência
de objeto definido, é mais severa do que o luto; ao constatar que se perdeu a
si mesmo, o melancólico pode optar pela extinção da vida.
Lembramos outro documento antigo atribuído a Aristóteles ou
a Teofrasto, discípulo de Aristóteles, o tratado avizinha melancolia e loucura
(mania) poética; melancólicos seriam artistas, políticos, filósofos,
gente que se ocupa com a invenção de mundos imaginários. Os românticos do
século XIX aproximaram melancolia e genialidade, a melancolia tornou-se
qualidade de artistas.
Marcou época a Melancoliade Albrecht Dürer, amigo de Lutero. A gravura do artista representa uma misteriosa
mulher alada, de olhos fixos no vazio; cercada de objetos, produtos da
inventividade humana, ela não se interessa por nada, não a atrai o sol que
brilha no horizonte.Dobras, sinal de
inquietação, agitam o vestido que a cobre do pescoço aos pés. A mulher perdeu o
prazer de viver ou espera revelação? Os observadores divergem, obras de arte
prestam-se a muitas interpretações. A gravura de Dürer ilustraria a doutrina
luterana da graça? A mulher, considerando sem valor tudo o que o ser humano
faz, poderia aguardar de Deus a revelação do sentido da vida. Acontece que a Melancolia
de Dürer é de 1514, a atividade de Lutero começa em 1517, ano em que o
monge pregou as Noventa e cinco teses nas portas da capela de Wittenberg
para serem discutidas em ambiente acadêmico. Isso aconteceu em 31 de outubro,
data em que se comemora a Reforma. Seria Dürer luterano antes de Lutero? A
hipótese não é estranha. Lutero continua o trabalho de Paulo de Tarso, epistológrafo
desde o ano 50, duas décadas depois da morte de Cristo. Na Idade Média,
Agostinho, autor respeitado e difundido, reflete sobre os ensinamentos de
Paulo, Lutero foi monge agostiniano. A gravura de Dürer merece atenção.
Momentos de melancolia atormentaram Lutero, não se pode contornar a existência
de uma melancolia religiosa.
Abra-se o Novo
Testamento, leia-se o início da Primeira Carta de João. O apóstolo exalta a
vida. Faça-se diferença entre vida biológica (bios) e vida que vence a
morte (zoé). A vida biológica é de competência médica, psicanalítica,
antropológica, sociológica, artística, filosófica e política. Médicos
prescrevem medicamentos, autoridades políticas cuidam da saúde pública com o
objetivo de oferecer ao mercado corpos saudáveis, responsáveis pelo
desenvolvimento agrícola, industrial e comercial (biopolítica), pensadores
ocupam-se do valor da vida terrena.
A vida religiosa (zoé) é assunto de João. Nesse
território a vida vem de Deus e é oferecida a todos. Os que a aceitam vivem
nela, alegram-se porque a vida deixou de ser mistério. A vida que vem de Deus
ilumina as tarefas de todos os dias. Somos afligidos por momentos de tristeza
porque a vida não é plena. Quem vive a vida que Deus confereexperimenta o processo de plenificação (pleroo).
Cabe a seguidores de Cristo acolher
solitários melancólicos na época em que estrondam as festas de Natal.
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