Uma das constatações imediatas ao
estudarmos a história da humanidade – especialmente quando a olhamos com lente
de aumento – é o fato de que, sempre quando o plano de Deus para a salvação do
ser humano foi ameaçado, ele mesmo interveio para fazer cumprir o seu plano
através da vida e obra de Jesus, até a cruz e a sepultura vazia.
Intervenções de Deus no curso da
história da igreja, como a que aconteceu em 31 de outubro de 1517, com Martinho
Lutero, são demonstrações de que um mestre da fé como Lutero, é apenas um dedo
indicado na direção de Cristo. Uma legítima e oportuna “intromissão divina” para
manter de pé aquele programa divino projetado no início da história humana.
Portanto celebrar festivamente a Reforma
significa ter como prato principal a verdadee como sobremesa a liberdade.
Não a verdade de Lutero, mas a verdade eterna pela qual Deus se revela como
único salvador do mundo na pessoa de Jesus Cristo; e a liberdade e a profunda paz
interior que brota desta extraordinária notícia. Dois ingredientes essencialíssimos
para a dieta dos filhos de Deus. O próprio Jesus os serve a todos amorosamente
no evangelho de João: “Conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” (Jo 8.32).
O
que apresentamos aqui, por isso, não é um relato sobre a história da Reforma de
cinco séculos atrás (e que em 2020 completou 503 anos), nem uma descrição sobre
o encanto das belas cidades históricas pelas quais Lutero passou. Apresentamos
o evangelho salvador, defendido por Lutero, pois o que realmente importa, ontem,
hoje e sempre, é que a história do amor de Deus encontre ressonância na nossa
vida; importa que ela mexa conosco, nos tire da dúvida e da incredulidade e renove
a confiança no amor de Deus e a esperança de que o céu continue sendo a nossa
mais preciosa herança através da cruz!
Como sabemos, o salmo 46 é um dos
textos mais belos da Bíblia. Como este salmo serviu de base para o reformador
Martinho Lutero escrever o seu mais conhecido hino – o “Castelo Forte” (no Hinário
Luterano, é o hino 165) –, vou tomá-lo como fio condutor do que segue. O
faço com entusiasmo, pois cantar o evangelho da verdade e da liberdade é uma
das expressões mais bonitas de um filho de Deus verdadeiramente livre.
Tanto o salmo como o hino de Lutero apresentam
a confiança incondicional na ação misericordiosa e salvífica de Deus. O “Castelo
Forte” é uma releitura em forma de louvor do salmo 46. Não sabemos exatamente
quando Lutero o compôs, mas, diferentemente do que muitos imaginam, o “Castelo
Forte” foi composto 10 anos após aquele marco inicial do movimento da Reforma e
numa época em que, em geral, as preocupações eram outras, como veremos. Somente
em 1529 ele aparece pela primeira vez em um hinário. Portanto, foi composto antes
daquele ano. Uma hipótese – e a mais provável – é que tenha sido composto
quando Wittenberg, em 1527/28, enfrentava a terrível ameaça de mais um surto da
longa e mortal peste negra – de longe, a maior de todas as pandemias que já
assolou a humanidade. Aliás, quando o novo surto dessa peste chegou em
Wittenberg, contam os historiadores que João, o príncipe-eleitor da Saxônia,
ordenou a transferência da universidade para outra cidade a 170 quilômetros de
distância. Mas, curiosamente, Lutero e alguns professores e pastores, numa
bonita demonstração de amor, decidiram ficar na cidade. Lutero acolheu muitas pessoas em sua casa – o antigo mosteiro
agostiniano – e a transformou num hospital, apesar de sua esposa Catarina
estar nos últimos meses de gravidez e seu filho primogênito, Hans, também estar
doente. Naquele mesmo ano de 1527, Lutero escreveu uma carta ao pastor
Johannes Hess com o título: “Se alguém pode fugir da Peste Negra”. Um pequeno
guia prático muito atual para todos os cristãos e uma admirável lição de fé e
apreço à ciência. (Uma síntese dessa carta encontra-se disponível em: https://www.luterano.com.br/categoria/comunicados/page/2/.) Lutero argumenta que, tanto a falta de cuidados
com a saúde pessoal – que não passa de uma fé valentona e imprudente –, como a
falta de amor ao próximo e de caridade para com os doentes, atentam contra a
vontade de Deus.Isso nos leva a uma
preciosa pista para afirmar que o pano de fundo da letra do hino “Castelo Forte”
é, antes de tudo, uma belíssima confissão de confiança em Deus, nosso refúgio
em toda e qualquer tentação e tribulação, enfermidade, catástrofe natural e
angústias mil.
Lutero estava pensando em algumas
perguntas fundamentais para a vida cristã: O
que nos sustenta nos momentos difíceis de nossa vida?E quando chegarmos ao fim de nossa vida, o que de fato nos consola,
encoraja e nos dá esperança de vida? Essas são as questões de fundo do “Castelo
Forte”, composto dez anos depois daquele 31 de outubro de 1517.
Neste ano 2020, em que vivemos a “peste
da Covid-19”, o “Castelo Forte” e o salmo 46 se revestem de espantosa
atualidade. No salmo, aparecem catástrofes naturais, como deslizamentos e
terremotos – nos vs. 2 e 3 “Ainda que a terra seja abalada e as montanhas caiam nas profundezas do
oceano. Não teremos medo, ainda que os mares se agitem e rujam e os montes
tremam violentamente”.Diante
dessas terríveis ameaças de destruição e morte, permanece em destaque a
afirmação grandiosa e inicial do Salmista: “Deus é o nosso refúgio e a nossa força
(fortaleza), socorro sempre presente (que não falta) em tempos de aflição”. Em meio à realidade do sofrimento
humano, Deus protege Jerusalém, e faz com que das áridas terras brotem águas cristalinas
que alegram o coração.
Recitamos o salmo 46 e cantamos o hino “Castelo
Forte” como gratidão a Deus por estar conosco em todas as situações, por
preservar nossa vida, sim, mas especialmente por preservar a sua Palavra e a
cristandade contra todos os demônios, dos entusiastas, do mundo, da carne, dos
pecados e da morte eterna.
Poderíamos perguntar se não é uma esperança ingênua e irreal
tanto do salmo 46 como do hino de Lutero? Será que também nós podemos declarar
como nossa essa mesma confissão? Especialmente se cantarmos na quarta
estrofe – lembrando que as palavras no original alemão são ainda mais
chocantes: onde no português foi traduzido (para ajustar a métrica do canto): “se
vierem roubar os bens, a vida e o lar”, no original diz: “se vierem arrancar
corpo, bens, honra, mulher e filhos”?
Sem
dúvida, Lutero não ignora a dura realidade das tentações, do sofrimento, do mal
e da morte. Por isso mesmo ele as descreve com tanta crueza. Masele conhece uma realidade
ainda maior: a graça de Deus, que
sempre prevalecerá – que sempre triunfará na luta. Logo na primeira estrofe é
dito que a luta é contra muitos inimigos, dentre os quais, o maior de todos: o
próprio diabo – que sabe lutar como ninguém na terra e a quem ninguém é capaz
de resistir, a não ser se refugiando em Deus. SOMENTE ELE É NOSSO REFÚGIO: ONTEM, HOJE E PARA SEMPRE!
Com esta confiança, e apenas com ela,
podemos encarar a realidade, mesmo que se apresente profundamente aterradora e
cruel. Com esta confiança, nada pode nos trazer pavor e medo. O diabo não tem
mais nenhum poder; uma única palavra de Deus basta. Conforme o original, basta
para Jesus uma “palavrinha” só (nur ein Wörtlein).
A supremacia de Deus não poderia ser
expressa de forma mais firme e contundente! Todos os nossos esforços de nada
valem, mas para Deus uma só “palavrinha” basta. Se uma única palavrinha é
suficiente para Deus, por que haveríamos de temer o sofrimento físico ou
qualquer outro mal nesta vida curta e passageira, se dele recebemos a promessa
da salvação eterna?
Mas será que não parece demais acompanhar
Lutero na sua releitura do salmo 46 quando afirma: “Que tudo se vá? Corpo,
bens, honra, mulher e filhos”?Será que não se trata de desprezo tanto
do salmista como de Lutero por esses valores tão substanciais e importantes
para a vida e tão íntimos em nossas relações, com os quais Lutero, em vida,
também se alegrou? Com certeza, não! Nada disso, por mais precioso que seja, dá
real segurança para a vida. Mais cedo ou mais tarde, seja de forma dramática,
seja de forma tranquila e natural, todos teremos de enfrentar o “último
inimigo” inalienável e iniludível, que é a morte. Todos, sem exceção, terão que
enfrentá-la, mas o cristão é bondosamente lembrado pela Palavra que também esse
“último inimigo” será destruído por Jesus. Vencido ele já foi na cruz e
destruído será no dia do juízo.
Portanto, nada de humano pode nos dar segurança
diante das ameaças que nos rodeiam. Podemos até admirar grande fortalezas e
castelos, cujas muralhas parecem indestrutíveis, mas os castelos fabricados por
mãos humanas não nos darão a real e verdadeira segurança que procuramos e
necessitamos. Como escreveu Agostinho de Hipona, no século IV, um dos mestres
intelectuais de Lutero: “O coração humano anda inquieto enquanto não descansar
em Deus”. Apenas em Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, encontramos verdadeira
segurança e paz. Somente ele é o nosso
castelo forte, refúgio que não falta: ontem, hoje e para sempre! Não há
na terra nenhum outro castelo que seja realmente forte e bom. Apenas Deus! “Isso é certissimamente verdade”, escreveu
Lutero repetidas vezes no Catecismo.
Por isso, o salmo 46 e o mais famoso
hino da Reforma nos remetem à realidade maior sob a perspectiva de Deus – nos
levam a considerar o olhar de Deus sobre a história – um olhar de perdão e
graça pela humanidade ao enviar seu Filho Jesus. Embora encarem com grande
realismo as catástrofes naturais e o pecado humano na história e todos os tipos
de sofrimentos por ele causados, eles insistem em afirmar que a transcendência
pisca para nós no cotidiano; que há algo mais extraordinário, mais poderoso e
eterno atrás da “cortina dos nossos sentidos”; que há algo maior e mais
decisivo que pode ser encontrado na pessoa do Filho de Deus, Jesus Cristo.
Assim, tanto o salmo 46 como o “Castelo
Forte” podem ser recitados com alegria e cantados com entusiasmo por todos os
cristãos, pois apontam diretamente para o centro do evangelho de Cristo. Todos
os atingidos pela “intromissão divina” da mensagem do evangelho vivem confiantes
e agradecidos a Deus, o ÚNICO REFÚGIO:
ONTEM, HOJE E PARA SEMPRE.São dedos indicados na direção de
Cristo, especialmente quando compartilham a paz e o perdão que receberam dele, em
todos os tempos, também nestes tão difíceis e desafiadores que vivemos em 2020.
Às vésperas de mais uma festa natalina
e um fim de ano, sigamos em frente, sem medo e sem desespero, agradecidos e confiantes,
sabendo que Deus nunca nos falta. Somente ele nos sustenta em toda e qualquer
situação até o fim. Que a gratidão, que tem os olhos no passado, sustentada
pela fé na ação misericordiosa e salvífica de Deus em Cristo, se converta em
muitos atos de amor, com os olhos no presente, e renove nossa esperança com os
olhos no futuro – o céu, nossa mais preciosa herança e eterno descanso!
Enio
Starosky
Teólogo, Educador
Diretor do Colégio Luterano “São Paulo”, São Paulo, SP
Assine o mensageiro luterano e fique por dentro dessa e outras notícias
Aos poucos, algumas pessoas foram se juntando a esse grupo, outras foram reconquistadas, e hoje, oito anos depois, aqui estamos, com a bênção e força de nosso Deus, retomando a missão nos Campos ...
Ao longo de 100 anos, a IELB, através de diferentes líderes, em tempos e situações diversas, mais ou menos difíceis, sempre decidiu manter a sua Editora Concórdia, por entender ser ela o braço ...
“Se Jesus estiver lhe chamando, pode ir, pai. Está tudo bem. Quando estamos com Jesus, está tudo bem. Não precisa ter medo. Quando ele te chamar, pode ir”
Conselheiros destacaram o momento de fortalecimento e crescimento, com os projetos educacionais se consolidando e resultando em aumento do número de alunos matriculados nas escolas da rede luterana
Importância de transmitir a Palavra aos filhos levou servas a aderirem à temática do Congresso Nacional da LSLB e convidarem seus familiares a participar