Conta-se
que um pastor, ao ser perguntado sobre o que havia de novo, sempre respondia:
“João, três, dezesseis”. Um texto tão antigo, mas uma mensagem sempre nova. E
uma mensagem boa. Outro pastor teria ouvido um comentário, em tom de queixa:
“Pastor, nunca ouvi o senhor pregar sobre João 3.16!”. Ao que ele teria
respondido: “João 3.16 está em todas as minhas pregações!”. De fato, João 3.16
é a Bíblia em miniatura. Se o restante da Bíblia se perdesse, mas ainda
tivéssemos João 3.16, não estaríamos totalmente no escuro. Eis o texto, na
tradução de Almeida: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna”.
João 3.16 fará parte da leitura do evangelho em pelo menos dois cultos
deste ano: agora, no Quarto Domingo na Quaresma (14 de março), e, mais adiante, no Domingo da Santíssima Trindade (30 de maio). No Domingo da Trindade, ouviremos o trecho de João 3.1-17. Na Quaresma, teremos um recorte um pouco diferente: João 3.14-21.
E a leitura de epístola desse domingo é Efésios 2.1-10. O Quarto Domingo na Quaresma será, de fato, um superdomingo.
Quem se dispõe a falar ou escrever sobre João 3.16 corre o risco de se
tornar repetitivo. Afinal, muitos sabemos esse texto de cor e salteado. E quem ainda não sabe, deveria aproveitar a oportunidade e memorizar. No entanto, vale a pena reler João 3.16 de forma lenta e pausada.
Um começo com
“porque”
Em primeiro lugar, um alerta: Não podemos ler João 3.16 de forma isolada.
Em geral, João 3.16 aparece como um daqueles textos bíblicos portáteis, facilmente tirados do lugar em que se encontram e lidos como se fossem afirmações isoladas. No entanto, existe um “porque” no início do versículo (“Porque Deus amou...”). Esse
“porque” não deixa que a gente separe o versículo daquilo que veio antes. O “porque” ou “pois” mostra que João 3.16 reforça ou dá sustentação ao que foi mencionado antes, ou seja, ao que Jesus disse a Nicodemos: “É necessário que o Filho do Homem
seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna” (Jo 3.14-15). Na igreja, dificilmente alguém leria apenas o versículo 16 de João 3. Começar com, pelo menos, João 3.14 é fundamental para a adequada compreensão do versículo 16.
Deus amou o mundo
Nossa “Bíblia em miniatura” apresenta algo que Deus fez. Ele é o sujeito,
o agente. Não é a primeira vez que o termo “Deus” aparece no evangelho de João, porque Deus é mencionado já no primeiro versículo do evangelho (Jo 1.1). Mas, com a possível exceção de João 1.6 (um homem chamado João foi enviado por Deus), esta
é a primeira vez, neste evangelho, em que Deus aparece como sujeito. Deus faz algo. Deus “amou o mundo”.
Mas não seria melhor dizer que Deus ama o mundo? Com certeza. Mas
esse texto, que traz a primeira referência a amar no evangelho de João, tem em vista uma ação específica. Deus amou quando “deu o seu Filho unigênito”. Amor é um sentimento, uma emoção? Pode ser. Mas amor é também atitude, é ação. Talvez você já tenha
ouvido falar sobre uma suposta diferença entre o amor-
filía (o amor que “gosta” de alguém, quase uma amizade) e o amor-agápe (o amor que “se sacrifica” por alguém). No entanto, se essa diferença existe, ela não aparece no evangelho de João. Em “Deus amou o mundo” aparece o amor-agápe.
Mas, quando se diz que o Pai ama o Filho (Jo 5.20) e que o Pai nos ama (Jo 16.27), o verbo usado é esse que sugere amor-filía. São dois tipos de amor? Não. É o mesmo amor. Apenas são verbos sinônimos, verbos com o mesmo significado no texto
de João.
O mundo é objeto da ação de Deus. Mas o
que se entende por “mundo”? Antes de tudo, cabe dizer que este é um termo bem
frequente em João, pois aparece 78 vezes. Isso é um bocado, especialmente em comparação
com Lucas, onde o termo “mundo” aparece só três vezes! Em João, esta é a quarta
vez que o termo aparece. Em João 1.9, ouvimos que o Verbo (o Filho de Deus) é a
verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina toda a humanidade. No
versículo seguinte (Jo 1.10), ouvimos que o mundo não conheceu o Verbo.
Ah, o mundo tem a possibilidade de conhecer, ou, para ser exato, “não
conhecer”. Logo, não se trata do Universo nem do planeta Terra. (“Mundo” pode
ter esse significado de “toda a criação”. Por exemplo, em João 17.5 e João
21.25. Mas este não é o significado de “mundo” em João 3.16.) Em João, esse
mundo ainda é apresentado como tendo “pecado” (Jo 1.29). Conclui-se que o “mundo”
de João 3.16 somos nós, pessoas de carne e osso. Não se trata de “alguns, mas
não todos” ou “estes, mas não aqueles”, porque “mundo” é todo mundo mesmo (1Tm
2.4)! Este mundo-povo que não quis saber do Verbo (o Filho de Deus) e que está sob
o pecado foi objeto do amor de Deus. Seria possível dizer que Deus amou o mundo
mais do que amou o seu próprio Filho. Este é o mistério da Quaresma.
De tal maneira que
deu o seu Filho unigênito
Deus amou o mundo “de tal maneira”. Como entender esse “de tal maneira”?
É o mesmo que “assim”, indicando a maneira como Deus amou. Mas não é fato que existem bíblias que dizem que Deus amou o mundo “tanto”? Sim, a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) diz isso. É uma leitura possível, mas menos provável. A linguagem
de João é qualitativa (como Deus amou?) e não quantitativa (com que intensidade Deus amou?). Segundo essa leitura mais recente da NTLH (“Deus amou tanto”), aquilo que segue, a saber, “que deu o Filho”, precisa ser entendido no sentido de “a ponto
de dar”. Deus amou tanto, que chegou a ponto de dar o seu Filho. Na leitura tradicional da Almeida (“Deus amou de tal maneira”), aquilo que segue, a saber, “que deu o seu Filho”, explica como Deus amou. Deus amou ao dar o seu Filho.
Como Deus amou o mundo? João 3.14 explica:
Deus amou o mundo, tornando necessário que o Filho do Homem (Jesus) fosse levantado
(Nm 21.9). Ele foi levantado na cruz. Mas isso ainda não é tudo. A explicação
continua no versículo 17: “Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para
que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele”. Em outras
palavras, Deus amou o mundo, tomando providências para que o mundo não fosse
condenado, mas salvo. A missão de Jesus, lá no tempo do Novo Testamento, não
era julgar e condenar, mas salvar (Jo 8.15; 12.47). Por quê? Porque Deus amou
o mundo.
Deus deu o seu Filho, ao levantá-lo na cruz com vistas à salvação. Quem
é esse Filho? Você dirá rapidamente que ele é Jesus Cristo, mas este nome não aparece em João 3.16. (Esta seria nossa maior dificuldade, se tivéssemos apenas João 3.16: quem é esse Filho?) Em João 3.16, apenas se diz que Deus deu o “Filho unigênito”.
Mas o que se entende por “unigênito”? Trata-se de uma tradução bem literal do termo grego monogenés (ver também Jo 1.14, 18; Jo 3.18), que, em português (via latim), resulta em uni-gênito (“único gerado”). Mas é possível dizer também
“único”. Porque, se o Filho de Deus, Cristo, é o “único gerado”, isso significa que Deus não tem outro Filho como ele. Ele é o único de seu tipo ou de sua classe. É nesse sentido que a NTLH pode dizer que Deus deu o seu “único Filho”. (Deus
tem mais filhos, pois, como diz João 1.12, ele nos deu o poder de sermos feitos “filhos de Deus”. Mas só Cristo é Filho “unigênito” ou “único” de Deus.)
Para que todo o
que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna
Deus amou o mundo e nos deu o seu Filho (na cruz) com um propósito, um
objetivo. Note que João 3.16 inclui um “para que”. Esse “para que” é expresso de forma negativa (“não pereça”) e de forma positiva (“tenha a vida eterna”). Será que “não perecer” equivale a “não morrer” (como diz a NTLH)? Sim, se esse “morrer” é entendido
no sentido de “morte eterna”, morte como afastamento eterno de Deus. Note que perecer ou perder-se é uma possibilidade real. Mais adiante, em João 10, o Bom Pastor fala que o ladrão vem para matar e destruir (ou “fazer perecer”; Jo 10.10), mas que
ele, o Bom Pastor, dá vida eterna às suas ovelhas e que elas “jamais perecerão” (Jo 10.28). “Ter vida eterna” é o contrário de “perecer”. Levando em conta o que Jesus falou a Nicodemos, ter vida eterna é “entrar no Reino de Deus” (Jo 3.5). “Ter vida
eterna” é o mesmo que “ser salvo” (Jo 3.17) e “não ser condenado” (Jo 3.18).
Tudo maravilhoso, tudo excelente. Mas isso
é tudo? Como termina essa história? Nossa lógica diria o seguinte: “Deus amou o
mundo, dando o seu Filho único, que foi levantado na cruz. Se Deus mandou o seu
Filho ao mundo para que o mundo fosse salvo por meio dele (Jo 3.17), então o
mundo está salvo. Este é o fim da história e agora viveremos felizes para
sempre”. Note, porém, que o texto bíblico não diz isso. Em João 3.16 existe
mais um detalhe: “todo o que nele crê”. Essa afirmação é ao mesmo tempo ampla e
restritiva. “Todo o que nele crê” pode ser qualquer um. Não há limitação
no sentido de “uns sim, outros não”. Mas também não é qualquer um. É “todo
aquele que crê”. Mas o que se entende por “crer” ou “ter fé”? Crer, no
sentido bíblico, não é uma sensação um tanto vaga de que tudo vai dar certo. Crer
é entregar-se a alguém (a Deus, a Cristo) em total confiança. Note que João
3.16 não diz simplesmente “para que todo o que crê não pereça”, mas “para que
todo o que nele crê”. A fé tem um objeto ao qual se apega, e esse objeto
é o Filho unigênito de Deus.
O texto de João 3.16 não trata disso, mas
cabe acrescentar que a fé que salva não é uma qualidade com a qual a gente nasce.
Também não podemos criar fé em nós mesmos, porque ela é dom de Deus (Ef 2.8, a
epístola do Quarto Domingo de Quaresma). Deus nos dá a fé, ao nascermos “da
água e do Espírito” (Jo 3.5). Assim, por mais essencial que seja a fé, é
problemático dizer, como por vezes se diz, que “tudo que nós precisamos
fazer é crer”. Correto é dizer: “Creia no Senhor Jesus e você será salvo!”
(At 16.31).
Resumindo
João 3.16 é a Bíblia em miniatura. Esse versículo
diz muito. Coloca o foco em Deus, em especial naquilo que Deus faz. Deus amou o
mundo ao dar o seu Filho, com o propósito de possibilitar a vida eterna a todo
aquele que crê no Filho unigênito de Deus. Mas João 3.16 não diz tudo. Não nos
fala sobre a situação de pecado em que se encontra esse “mundo” que foi amado
por Deus. Não explica diretamente como Deus “deu” o seu Filho. Não identifica
ou diz o nome do “Filho unigênito” de Deus. Também não explica como se chega à
fé. Por isso, João 3.16 – a exemplo de tantos outros textos bíblicos – precisa
ser lido dentro de seu contexto. Mas é um texto e tanto!