Educar para o amor: voz média


Ler em formato flip
19/03/2021 #Artigos #Editora Concórdia

Parte 1

Educar para o amor: voz média

Antes de prosseguir com nossas reflexões sobre a Educação para o Amor, devo introduzir um conceito linguístico-filosófico-teológico da maior importância para o pensamento cristão: “voz média”, que poderá iluminar também o mistério do amor. Faremos isso seguindo de perto (e reproduzindo) as pesquisas de Jean Lauand, o filósofo brasileiro que melhor estudou esse tema e de quem fui coautor do artigo no qual especialmente me apoiarei: “Josef Pieper e C. S. Lewis: metodologia, linguagem e amor” (“Convenit Internacional, n.12, CemorocFeusp, 2013).

A “voz média” é, em si, um conceito muito simples e evidente, mas que, por conta de séculos de esquecimentos herdados, tornou-se opaco e invísivel para nós. E é que nossas gramáticas nos ensinam que a voz do verbo, a forma que este assume para indicar que a ação verbal é praticada ou sofrida pelo sujeito, pode ser: “voz ativa” ou “voz passiva”, se o sujeito é agente da ação ou paciente dela: “Os pais educam o filho”/“O filho é educado pelos pais”.

A dualidade ativa/passiva dá-nos a falsa impressão de cobrir toda a gama de possibilidades (junto com uma “voz reflexiva”, na qual o sujeito pratica e recebe a ação: “O caçador feriu-se”).

Infelizmente, junto com tantas outras riquezas das línguas clássicas, perdemos também a “voz média”. A insuficiência da dualidade ativa/passiva torna-se manifesta quando consideramos certos verbos que não são ativos nem passivos: “nascer”, por exemplo. Eu “nasço” ou “sou nascido”? O português considera o nascer ativo; o inglês, passivo: “I was born”. Na verdade é um daqueles tantos casos ao mesmo tempo ativos-passivos, ou seja, de voz média. Sim, há um lado ativo do bebê ao “nascer”, mas é também evidente que ele “é nascido” pela parturiente...

Como diz Lauand: “Com a perda da voz média, o português perdeu não apenas um recurso de linguagem, mas sobretudo um poderoso recurso de pensamento, de captação e expressão de imensas regiões da realidade. De fato, é uma violência para com a realidade que empreguemos, por exemplo, o verbo ‘surtar’ como ativo: ‘O Gilberto é psicótico, ele surta a toda hora’. Como se o pobre Gilberto tivesse algum controle sobre as situações que o fazem surtar... Como se ‘surtar’ (ou ‘admirar’ e outras ações médias) pudesse ser ativamente ‘agendado’: “Na próxima 3ª. f. às 15h30 eu vou surtar; às 19h, vou me admirar, etc.”.

É a consciência da voz média, de que nossas principais ações não são só nossas, mas em interação com o outro (e o Outro: Deus) e a criação, que nos faz abdicar da “arrogância do protagonismo” e reconhecer a verdade da célebre sentença de Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância; e se não a salvo, não me salvo eu”. Lembrete que estes tempos de pandemia terrivelmente nos impõem.

Sem a voz média, as igrejas enfrentariam muitas dores de cabeça teológicas. As epístolas aos Coríntios apontam diversas vezes para esse beco, cuja única saída é o ativo-passivo, Deus-homem, daí os malabarismos de adversativas do apóstolo Paulo: “Porque eu sou o menor dos apóstolos, e não sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou, e a graça que ele me deu não tem sido inútil. Ao contrário, tenho trabalhado mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1Co 15.9-10).

Com este pressuposto teórico, sobre o alcance da voz média para a educação para o amor, falaremos na próxima edição.

Assine o mensageiro luterano e fique por dentro dessa e outras notícias

Já é assinante?

Não sou assinante

Enio Starosky

Teólogo e educador | eniostarosky@gmail.com

Artigos Leia mais


Notícias Leia mais


Assine o Mensageiro Luterano e
tenha acesso online ou receba a
nossa revista impressa

Ver planos