Uma (surpreendente) ontologia do amor


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11/06/2021 #Artigos #Editora Concórdia

Educar para o amor

Uma (surpreendente) ontologia do amor

           Em nossas reflexões sobre a educação para o amor, temos acenado para um dos mais grandiosos e fundamentais desafios do ato educativo: o retorno à sabedoria tradicional, que busca educar a partir de uma visão centrípeta de mundo. Por um senso de verticalidade, de centralidade, em permanente busca da fonte primeira e última de toda a existência (não centrífuga, que se desvia do centro, para longe da Fonte).  Apresentamos a visão amorosa como aquela que permite enxergar mais longe – porro videns, pois onde está o amor abrem-se os olhos – ubi amor, ibi oculus. E a apresentamos como o corolário da religação dos saberes e estruturadora de todas as relações educativas e sociais.

          Josef Pieper mostrou que toda filosofia vigorosa só pode se dar – conscientemente ou não – a partir de um precedente referencial teológico, e a pretensão de “ausência de pressupostos” (Voraussetzungslosigkeit) é, no fundo, uma ilusão. A força de nossa perspectiva filosófica cristã radica, em boa parte, na ideia de participação – participatio, metékhein: a criação pelo Logos (Jo 1) e a participação em Cristo (Hb 3.14). 

          Jean Lauand explica que a participação é um "ter" em oposição a "ser"; um "ter" pela dependência (participação) com outro que "é": a criatura tem o ser, por participar do ser de Deus, que é ser. Daí as comparações à luz e ao fogo: um ferro em brasa tem calor porque participa do fogo, que "é calor"; um objeto iluminado "tem luz" por participar da luz que é na fonte luminosa. E o cristão tem – por participação na filiação divina que é em Cristo – a vida divina que é na Santíssima Trindade.

           Assim, sem nenhum traço de panteísmo, toda a criação, até as realidades mais materiais, participa de Deus: foi criada pelo Logos e pelo Amor Criador do Espírito Santo.

          O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, nasce para a plenitude de amor, ainda que a radicalidade do pecado a tenha obscurecido. Esta profunda verdade é descrita na teologia agostiniana: “... E, apesar de tudo isso, quer louvar-te o homem, pequena parte de tua criação. Tu mesmo o moves a isso, fazendo com que se deleite em louvar-te, pois fizeste-nos, Senhor, para ti e nosso coração está inquieto até que descanse em ti”. (Fecisti nos domine ad te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te.) Em todas as suas buscas, é, lá no fundo, o Amor que o ser humano procura. Como numa mensagem cifrada nas criaturas – de modo reto ou perverso – buscamos aquela plenitude de realização a que, pela Criação, estamos chamados. Na Divina Comédia, Dante expressou isso em uma sentença ao vislumbrar o Paraíso: “Aquele doce fruto, que por mil ramos buscam os mortais, hoje te saciará”.

            Daí a força da obra da grande poeta brasileira, Adélia Prado, que celebra a “mística do cotidiano”, a maravilha da Criação, ou como ela poética-prosaicamente diz, a “maravilha do feijão”: “... a transcendência mora, pousa nas coisas... está pousada ou está encarnada nas coisas”.

           A Criação, sendo participatio, Deus conta com o papel ativo do ser humano (o governo e o domínio sobre a criação lhe pertencem por ordem divina), para consumar sua obra criadora: a inteligência humana “completa” a obra criadora do Logos; o amor humano, a obra do Espírito Santo.

          Outro aspecto essencial é que o amor sempre é “encarnado”, porque o ato amoroso do Criador o fez ter natureza corpórea. O amor humano essencialmente encarnado nos remete a mais um aspecto curioso da linguagem e nos posiciona diante do ontologicamente “surpeendente” a que nos referimos no título. É muito sugestivo que na língua alemã as palavras Leib (corpo), Leben (vida) e Liebe (amor) pertençam à mesma raiz “Lb”. Corpo, vida e amor mantêm uma unidade indissociável.

            Porém, numa sociedade altamente sexualizada, a ampla força do amor não é mais transparente. Já a expressão “cópula” soa como mera mecânica do corpo. Mas amor é mais do que o encontro de corpos, e a redução (exclusiva) ao sexo não se firma ou logo desaparece. Com isso não se estabelece de nenhum modo a importância de um amor “incorpóreo”. Ainda que os amores meramente naturais facilmente possam descontrolar, perverter e destruir o ser humano, a ampla experiência do amor pode ser, inclusive, uma cura para a obsessão pelo sexo – o que mostra o mergulho nos fortemente eróticos textos da poesia, da filosofia e da mística.

           O que é evidente é que, nem o espírito ama sozinho, nem o corpo. É a pessoa – como criatura unitária de corpo e alma – que ama. Na visão cristã não há espaço nem para a censura nem para a exaltação do corpo, pois o amor compreende a totalidade da existência em suas diferentes dimensões, inclusive a temporal.

           Toda a realidade do amor humano acontece na vida cotidiana pelo simples fato de possuirmos corpos. Mesmo que queira agradar o outro, não é simplesmente auto-esquecimento; ou seja, o amor de si mesmo é autoevidente e natural. Assim também o reconhece Paulo, o apóstolo: ninguém jamais odiou o seu próprio corpo”. Na felicidade do outro está o prazer que é refletido no próprio rosto de quem ama.

           E, por mais impressionante que pareça, a forma básica do amor humano é o amor a si mesmo, como o diz o próprio Cristo: “Ame o teu próximo como a ti mesmo”. Pois o homem, como ser absolutamente contingente, não necessário, tem muitas necessidades, sendo justamente uma das maiores a de precisar ser amado. Nesse sentido, nenhuma emoção é mais carente que o amor. Repudiar o amor por ser carente ou condicional é o mesmo que repudiar o próprio amor. Nossos amores sempre são resposta a um estímulo: o desejo por um “bem para mim”. Mesmo o amor entre homem e mulher não nasce da inteligência e da vontade, mas, de certa forma, acontece.

          Precisamente por isso, dar ao amor humano uma desmedida dimensão divina é torná-lo diabólico. A falsa divinização do amor priva-o da sua dignidade e o desumaniza. E a privação da sua humanidade retira dele a sua virtude. Porém o amor humano está em constante busca de unidade. E não lhe serve apenas a consciência da unidade; o desejo é o seu movimento básico e sua força primordial. Um desejo inteiramente condicional e interessado por alguém que acreditamos poder ancorar e afirmar nossa vida. Por isso o amor humano sempre é falta, necessidade, sede. Assim como eu tenho o que tenho para poder ser doado, também não tenho o que me falta, para poder receber como presente.

          É a ambivalência do amor humano: por ser amado pelo seu “Amante Criador”, pode, ao mesmo tempo, receber e estender seu amor. Por isso, desde o mais simples grunhido de afeto até o mais grandioso gesto de amor são formas de gratidão, de resposta à graça do doador, que impulsionam o ser humano a dizer: propter gloriam tuam – “como tu és maravilhoso”!

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Enio Starosky

Teólogo e educador | eniostarosky@gmail.com

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