Se a nossa casa terrestre, nosso corpo, se desfizer...


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25/06/2021 #Estudos #Editora Concórdia

Uma reflexão sobre morte, céu e ressurreição à luz de 2Coríntios 5.1-10

Se a nossa casa terrestre, nosso corpo, se desfizer...

1Pois sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos humanas, eterna, nos céus. 2E, por isso, neste tabernáculo gememos, desejando muito ser revestidos da nossa habitação celestial; 3se, de fato, formos encontrados vestidos e não nus. 4Pois nós, os que estamos neste tabernáculo, gememos angustiados, não por querermos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida. 5Ora, foi o próprio Deus quem nos preparou para isto, dando-nos o penhor do Espírito.

6Por isso, temos sempre confiança e sabemos que, enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor. 7Porque andamos por fé e não pelo que vemos. 8Sim, temos tal confiança e preferimos deixar o corpo e habitar com o Senhor. 9É por isso que também nos esforçamos para ser agradáveis a ele, quer presentes, quer ausentes. 10Porque é necessário que todos nós compareçamos diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo. (Nova Almeida Atualizada)

 

          O texto de 2Coríntios 5.1-10 é considerado um dos mais difíceis dentro das cartas do Novo Testamento. Um dos motivos é que, aparentemente, o apóstolo Paulo mudou de ideia quanto às “coisas relacionadas com o fim”, especialmente no que diz respeito à sua expectativa da ressurreição. Afinal, em 1Coríntios 15.52, ele afirma que os mortos (eles, sim) ressuscitarão, e que nós (os que estivermos vivos, entre os quais Paulo se incluía) seremos transformados (sem passar pela morte). No momento de escrever a Segunda Carta aos Coríntios, parece que Paulo contava com a possibilidade de que “o cântaro vá se quebrar junto à fonte”, para usar a metáfora de Eclesiastes 12.6. É que Paulo havia passado por uma experiência da qual ele nem esperava sair com vida (2Co 1.8), e da qual nos faltam maiores detalhes. E, em 2Coríntios 4.14, o apóstolo confessa que Deus “nos ressuscitará”. E ressuscitar só pode quem já morreu. Mas será que Paulo mudou de opinião, desistindo da esperança da ressurreição em favor de algo diferente? O estudo do texto irá responder.

          De início, cabe examinar o que vem imediatamente antes do capítulo cinco e que pode explicar o motivo por que Paulo se expressa assim no capítulo cinco. Paulo havia falado sobre o ser exterior que se desgasta (2Co 4.16). Também deixou claro que não olhamos para as coisas que se veem, porque essas são temporais, passageiras (2Co 4.18). Isso poderia dar a impressão de que o corpo não interessa. Está se desgastando, vai morrer, é passageiro, que se desfaça. Esqueça o corpo! Em resposta a isso, que seria um mal-entendido, Paulo se manifesta em 2Coríntios 5.

          Ele começa com um “sabemos”, que pressupõe algo que é, por assim dizer, de domínio público cristão. Será que era mesmo? Será que é em nossos dias? O que “sabemos”? Paulo escreve uma oração condicional: “Se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer”. Ele se vale de uma metáfora, uma figura. Não está falando literalmente sobre a demolição de uma casa. Mais adiante ficará evidente que ele fala sobre a morte do corpo. Mas o texto diz “se”. Se? Se eu morrer? Não teria de ser “quando eu morrer”? Na verdade, quem espera para qualquer momento a vinda de Cristo (e a ressurreição que virá junto com ela), mesmo estando no leito da morte, ainda dirá “se eu morrer”!

          Paulo usa a metáfora da casa e logo emenda que se trata de um tabernáculo, uma tenda. Esta é uma figura apropriada para o corpo, pois uma tenda não é permanente: é montada e, depois de algum tempo, desmontada. E agora vem a primeira surpresa. Quando poderíamos esperar que ele dissesse algo como “desmontada a tenda desse corpo, iremos para o céu, morar com Jesus”, ele diz: “temos da parte de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos humanas, eterna, nos céus”. Paulo contrapõe à frágil tenda um sólido edifício, uma construção. Ela não é feita por mãos humanas, o que significa que é algo feito por Deus. Como é obra de Deus, é casa eterna, nos céus. Mas não é uma casa na qual entraremos para morar, e sim nós, nosso corpo glorioso (1Co 15.44-49), sob a figura de uma casa, como ficará claro a partir da continuação do texto. (À primeira vista, Paulo parece falar sobre um “outro eu”, já pronto no céu. O biblista luterano Martin Franzmann chegou a escrever: “Paulo pensa nesse corpo novo, o corpo glorioso, como preparado e pronto para a pessoa remida nos céus, uma nova vestimenta, pronta para ser usada na glória”. Mas é preciso continuar a leitura, para entendermos bem o que o Paulo está dizendo.)

          Paulo acrescenta: “E, por isso, neste tabernáculo gememos, desejando muito ser revestidos da nossa habitação celestial” (v. 2). Na tenda, agora, gememos (este é o vale de lágrimas!) e temos o intenso desejo, não propriamente de partir e entrar no céu (Paulo falará disso, em parte, mais adiante), mas de sermos revestidos de nossa habitação celestial. Não é um desejo de ir morar no céu, mas de receber, do céu, essa casa eterna, não feita por mãos humanas, que é o corpo glorioso da ressurreição. Paulo mostra que a esperança primordial do cristão é ser revestido de algo que vem do céu, e não propriamente “morrer e ir para o céu”. (Onde nossa tradução diz “habitação celestial”, o texto original tem “a nossa habitação, a que vem do céu”.)

Junto com a figura das construções (tenda, edifício), Paulo apresenta uma segunda metáfora, a da vestimenta. Aquilo que esperamos é como um fulgurante edifício celestial (o corpo glorioso) que irá revestir a frágil tenda (nossa existência agora). Isso é como colocar uma roupa luxuosa sobre os trapos que vestimos agora. No versículo 4, Paulo diz isso com todas as letras, ao falar sobre o mortal que é absorvido (literalmente, “engolido”) pela vida.

          Antes disso, no começo do versículo 4, Paulo ensina que, angustiados, gememos (com a cabeça erguida), “não por querermos ser despidos, mas revestidos”. Isto significa, em linguagem direta, que nosso anseio não é virarmos uma “alma despida” (isto é, uma alma desencarnada), mas um “corpo revestido por um corpo glorioso (como o de Cristo)”. Não há salvação plena sem o corpo. Em Romanos 8.23, afirma-se expressamente que aguardamos “a redenção do nosso corpo”. Nada poderia contradizer mais frontalmente a visão espírita de almas que desencarnam e reencarnam! E, se nada está completo antes da ressurreição, numa cerimônia de sepultamento não será possível dizer: “Dona Maria agora alcançou aquilo que sempre almejava!”. Não. O estágio final ainda não foi alcançado no momento da morte; ainda falta a ressurreição.

          No versículo 6, Paulo apresenta mais uma coisa que “sabemos”, que é de domínio público cristão. “Sabemos que, enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor”. De fato, a nossa cidadania é celestial (Fp 3.20) e, enquanto aqui estamos, vivemos em terra estranha. Estamos ausentes do Senhor. Andamos por fé e não pelo que vemos (v. 7). Andando em terra estranha, sem enxergar o que esperamos (e que seremos), a preferência é “deixar o corpo e habitar com o Senhor” (v. 8). Sim, de fato, “se (ou quando) a nossa casa terrestre se desfizer”, vamos “estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor” (Fp 1.23). Paulo não nega isso. Ele não fala diretamente sobre “imortalidade da alma” e não usa a linguagem teológica de um “estado intermediário da alma”, mas é exatamente isso que ele diz. A Bíblia não ensina o aniquilamento da alma ou da vida no momento da morte. Só que esse “deixar o corpo” (na morte) não é a opção cristã preferencial nem a fase final da nossa existência. Por isso Paulo conclui esse trecho de sua carta, no versículo 10, com a referência ao tribunal de Cristo. Nada será final e definitivo antes desse Grande Julgamento.

          Este é o texto bíblico de 2Coríntios 5.1-10. É hora de abrir espaço para perguntas.

1) Sim, mas o que podemos dizer a respeito do céu? É errado dizer que, ao morrermos, vamos para o céu? Resposta: Não, não é errado, como o texto de 2Coríntios 5 mostra. Mas depende, em parte, de como entendemos “céu”. Como alguém se expressou, “o céu precisa ser determinado antes e acima de tudo em termos cristológicos”. Isso significa que “estar no céu” é estar “com Cristo” (Fp 1.23) ou “habitar com o Senhor” (2Co 5.8). Isso só será pleno quando nosso corpo for “igual ao corpo da sua glória”, isto é, ao corpo da glória de Cristo (Fp 3.21).

          2. Onde fica o céu, exatamente? Fica lá em cima? Resposta: A Bíblia usa a linguagem de subir e descer (Jesus subiu ao céu, At 1.11; o Senhor “descerá dos céus”, 1Ts 4.16). Também costumamos apontar para cima. Mas o céu não é um lugar fixo acima das nuvens ou atrás da cauda de um cometa. Os teólogos preferem dizer que o céu é um “lugar”, a habitação de Deus, sem que se diga onde exatamente fica. A Bíblia não nos permite dizer nada mais definitivo.

3. É certo dizer que podemos ter um “cantinho do céu” já nesta vida? Resposta: Se céu é estar com Deus, estar com Cristo, o fato de estarmos em Cristo já representa, sim, um cantinho do céu. Note que Paulo fala, no texto que estudamos (2Co 5), que “foi o próprio Deus quem nos preparou para isto, dando-nos o penhor do Espírito”. O Espírito é o Espírito Santo, que é Deus juntamente com o Pai e o Filho. Esse Espírito nos é dado. Que bênção! Mas ele é dado como penhor, como garantia de que coisa muito maior ainda virá. A presença do Espírito Santo, pela fé, é o céu que temos agora, e é garantia do céu pleno que teremos depois.

          4. Como é mesmo o céu? É verdade que lá existem ruas de ouro e de cristal? Por que o senhor não escreve um livro sobre o céu? Resposta: Muita gente pensa que a Bíblia está cheia de descrições do céu (e do inferno), mas isso não é bem assim. A Bíblia conta uma história que, em grande parte, se passa na Terra. Essas referências a ouro e cristal vêm do Apocalipse (Ap 21.21; 22.1). Ouro e cristal são maneiras simbólicas de descrever a beleza e perfeição desse ato de contemplar a face de Cristo (Ap 22.4). Quanto a escrever um livro, seria um livro bem pequeno, porque não há muito a dizer, se tudo que podemos dizer é o que a Bíblia ensina. Em 2Coríntios 12.4, Paulo fala sobre um arrebatamento ao paraíso, onde “ouviu palavras indizíveis, que homem nenhum tem permissão para repetir”. Diante da proibição, só nos resta calar.

          5. O céu é meio assim como uma nuvem transparente, uma coisa nebulosa, como costuma aparecer em filmes? Resposta: O céu é espiritual, no sentido de ser coisa de Deus, mas, segundo o teólogo C. S. Lewis, é a coisa mais concreta que existe, porque é realidade pura. Lewis escreveu: “A natureza do céu é mais literal do que as palavras mais literais que temos em linguagem humana para descrevê-lo”.

          6. Podemos dizer que teremos um “reencontro no céu” com os nossos familiares, como os pastores falam nos enterros? Resposta: A Bíblia não fala sobre isso diretamente. Ela fala sobre o encontro com Cristo, pois “o veremos como ele é” (1Jo 3.2). Mas, à luz de textos como Mateus 6.33 (ao Reino todas as coisas serão acrescentadas) e Romanos 8.32 (se Deus nos deu o próprio Filho, com certeza nos dará graciosamente com ele todas as coisas), certamente nos dará também essa felicidade de um reencontro no céu com todos os que são de Cristo e estão com Cristo.

          7. O fato de a salvação ser a redenção do nosso corpo, como diz Romanos 8.23, tem implicações práticas para o aqui e agora, não é mesmo? Resposta: Tem implicações, sim. Cuidar da alma, como dizemos, é cuidar do corpo também. Porque somos salvos como pessoas inteiras, corpo, inclusive. Não somos seguidores de Platão, nem espíritas; somos cristãos. Nessa condição, cuidamos do corpo, da saúde, das plantas, dos animais, dos rios – de tudo o que Deus criou.

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Vilson Scholz

Professor de Teologia no Seminário Concórdia vscholz@uol.com.br

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