Há 22 anos, meu filho prestes
a nascer, no primeiro dia de trabalho após um recesso de final de ano, lá pelas
16h, eu cruzei pela sala do gerente de RH da empresa em que trabalhava há quase
nove anos e, ao me ver ele me convidou para entrar ali. Perguntou como havia
sido o recesso, desejou “feliz Ano Novo” e seguiu: “Olha só: eu não sei como te
dizer isso, mas a empresa não precisa mais dos teus préstimos”. Simples assim. Eu
só perguntei onde precisava assinar, assinei e jamais indaguei sobre o que teria
motivado a empresa a tomar aquela decisão abrupta. Se estava consumado, estava
consumado. Juntei meus pertences e rumei para a minha casa. Lá, uma esposa
querida e parceira me esperava, para ouvir a notícia de que eu havia perdido o
meu emprego.
Foi fácil? Não. Tranquilo?
Não. Foi possível compreender o que tinha acontecido? Também não. Mas como diz
o dito popular, era preciso dar tempo ao tempo.
Certa manhã, tocou a campainha,
e era o meu irmão: foi ver como eu estava. Trazia solidariedade, amor fraterno
e conforto espiritual. Refrescou minha lembrança de que todas as coisas
cooperam para o bem daqueles que amam a Deus (Rm 8.28). Aquele ato foi muito
especial e, nas minhas lembranças, ocupa lugar na gaveta das preciosidades.
Após dois meses de apatia e
reclusão, eu iniciei uma nova carreira, num local muito especial. Um mundo novo
se abria para mim, repleto de desafios, oportunidades e chances de crescimento.
Desempenhando uma função
administrativa numa instituição de ensino superior, eu busquei qualificação
acadêmica, que, somada às experiências pregressas, dois anos depois, me
possibilitou ter o contrato alterado e eu passava a ser um professor
universitário. Diversas foram as atividades desenvolvidas, assim como os cargos
ocupados. Foi muito trabalho. Foi muito suor. Muita realização e comemoração.
Mas também houve noites sem dormir, na companhia de preocupações e incertezas.
Mas, parafraseando Fernando Pessoa, tudo valeu a pena. Tudo: as aulas
ministradas, os alunos orientados, os projetos implementados, os
assessoramentos, as interações interinstitucionais e com as instâncias
superiores da instituição, tudo foi valioso e ajudou a construir o Gustavo que
eu sou hoje.
E, como tudo na vida da gente,
essa experiência se acabou, 21 anos depois de ter iniciado. E lá estava eu,
recém-doutor – pois continuei a minha qualificação pessoal – tendo perdido,
mais uma vez, o meu emprego. O contexto era outro, mas o cenário incerto era o
mesmo. Com agravantes, como a pandemia da Covid-19, a minha idade e, sim: a
minha qualificação. Afinal, como se sabe, a qualificação de uma pessoa pode
dificultar a sua recolocação profissional. Mas os desafios estão aí para serem
encarados, com a convicção de Romanos 8.28.
Novamente, a família
desempenhou um papel especial naquele momento, pois é inegável que a autoestima
se abala e que a solidariedade é muito bem-vinda. Vale destacar aquelas
manifestações inimagináveis, de origens tão improváveis, assim como as que
confirmam a solidez de uma amizade – seja na mesma cidade, do outro lado do
Atlântico, ou da margem de lá do Rio Nilo – que nem o tempo e a distância esmorecem.
Então, você se acorda e se
pergunta: o que fazer? Por onde começar? O que buscar? Em termos gerais, o
mercado da Educação passando por uma das crises mais severas que o país já
assistiu. Nas instituições de ensino, vagas fechadas. Muitos professores nas
mesmas condições que eu: qualificados e disponíveis.
Aí, você lembra do versículo
bíblico que descobriu na juventude e que o acompanha na vida: “No mundo passais
por aflições, mas tende bom ânimo: eu venci o mundo” (Jo 16.33). E considera
que viver esta situação aos 53 anos pode ser menos dramático do que vivê-la aos
32, pois carrega outras experiências e vivências. Muito embora outros elementos,
como já mencionados, possam jogar contra. Além disso, se dá outra vez, o
acontecido só ajudou você e o impulsionou para um mundo novo, por que não isso
acontecer novamente?
Em meio a planos e projeções
de cenários, eis que o meu filho me pergunta: “Pai, tu consegues fazer uma
torta de amendoim para entregarmos na terça-feira, às 16h?”. Frente ao meu
estranhamento, ele explicou: “É que eu divulguei no Instagram que estamos aceitando
encomendas das tortas que tu e a mãe fazem”. O que dizer, além de se emocionar?
Aquilo que sempre foi feito
para o nosso consumo, ou atendendo a alguma situação muito específica fora do
circuito familiar, passou a ser uma perspectiva de atividade laboral. “Mas dr. Becker,
o senhor, com mais de vinte anos de carreira acadêmica, vai produzir tortas?”. “Sim,
por que não? Vamos lembrar do que diz Lutero sobre as vocações? E sobre o valor
que qualquer trabalho tem perante os olhos de Deus? Então, ao menos
momentaneamente, bora fazer tortas!”. Vamos participar, indiretamente, de
momentos especiais da vida das pessoas? Vamos celebrar aniversários de
casamento; mais um ano de vida? Vamos curtir um novo trabalho; um batizado?
Vamos alegrar o chá da tarde de uma vovó? Comemorar o Dia do Pastor? Vamos
preencher com um pouco de doce e de cor os dias cinzentos gerados pela pandemia
da Covid-19, quando muitas pessoas se impuseram, previdentemente, restrições de
deslocamento? E o Dia das Mães, o Dia dos Pais? O Natal, a Páscoa e tantas
outras datas? Sim, nós estamos celebrando esta data posicionados no outro lado
do balcão. Virando noites, indo dormir tarde, quase sem tempo para organizar os
nossos momentos especiais, mas com alegria no coração e muita gratidão a Deus.
Hoje, os meus desafios passam
pela gestão de insumos, pela busca de fornecedores, pela dificuldade de compor
um preço, pela necessidade de divulgar o nosso trabalho. Passam pela produção
fotográfica, pela gestão de redes sociais e pela interação com os clientes. Eu
sinto alegria no que faço, contando com o apoio da minha esposa e do meu filho.
Ambos, paralelamente às suas atividades específicas, ajudam, sempre que
possível. Por isso, as nossas tortas têm uma identidade familiar.
Eu julgo relevante destacar: todo
conhecimento que eu acumulei, assim como as relações estabelecidas até então, tudo
segue comigo. Isso é o meu patrimônio intangível. E que, de algum modo,
influencia a minha atividade atual. Tanto é assim que, nos últimos meses, eu
tive a oportunidade de publicar trabalhos e de participar de atividades
acadêmicas que independem de um vínculo institucional. Isso significa que eu
não abandonei a carreira e tampouco descarto a sua retomada.
E surge a pergunta: Então tudo
está resolvido? Não. O futuro me preocupa? Sim. Esta atividade é definitiva?
Não sei. Mas enquanto estiver envolvido com ela, ela terá o meu melhor.
Paralelamente a essa nova
realidade, eu me sinto privilegiado pela oportunidade que tenho de seguir servindo
a Deus na igreja, na minha congregação, no Departamento de Ensino, na Comissão
de Colóquio e no Programa Missão Ministério e Liderança (MML) da IELB – espaços
nos quais eu aprendo muito e cresço como cristão.
Por tudo isso, eu sou muito
grato a Deus, que conduz a nossa vida com a sua sabedoria, fazendo valer o que
Mateus registra no capítulo 6, versículos 25 a 34. Eu convido você a ler aquela
passagem que nos traz tanto alento, esperança e fortalecimento da fé.
Gustavo
Eugênio H. Becker
Professor
universitário, empreendedor da Becker Haus Tortaria Artesanal
Membro
da Comunidade Concórdia, São Leopoldo, RS.