O que é crer?


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26/08/2021 #Editora Concórdia #Artigos #Reflexão

(uma antropologia da fé – parte 1)

O que é crer?

        Desde a primeira edição do ML de 2021, tenho escrito sobre a educação para o amor e suas interfaces com a escola, sobretudo pensando nas escolas confessionais luteranas. O rosto do amor de Deus é refletido nos amores humanos, ainda que sejam apenas imitação...

Neste número, começo a apresentar ao leitor a reflexão de um dos principais filósofos alemães, Josef Pieper (falecido em 1997), sobre uma das virtudes mais íntimas ao amor: a fé. Fé, esperança e amor, como se sabe, são descritas na cristandade, como as virtudes teologais.

O texto a seguir é a primeira parte de uma límpida conferência filosófica sobre o crer – ministrada por Josef Pieper, autor que foi tema de minha dissertação de mestrado. A tradução foi feita por um dos mais conceituados intelectuais da língua portuguesa, Jean Lauand, professor titular sênior da Universidade de São Paulo (USP) e, para minha imensa honra, professor colaborador do Colégio Luterano São Paulo, na capital paulista.

 

Duvidar, opinar, saber e crer

Nesta primeira parte, Pieper analisa as quatro possíveis tomadas de posição intelectual: duvidar, opinar, saber e crer. E chega a algo de notável importância para a verdadeira fé cristã: a especificidade (e a dificuldade) do ato de crer, que consiste em sua relação não só com um algo, mas principalmente com um alguém (ou Alguém...). Daí que a verdadeira e viva fé cristã – ao contrário das diversas falsificações contemporâneas – tenha que passar necessariamente pela relação pessoal do fiel com Deus, como um Alguém pessoal... 

“Se alguém me pergunta: ‘Você crê nisto?’” – o que exatamente ele quer saber de mim? Alguém me dá uma notícia para ler, ou a lê para mim e, visivelmente ele a tem por espantosa, por improvável; e então olha-me no rosto e pergunta: “Você crê nisto?”

Evidentemente, o que ele quer saber é se eu dou a notícia por certa, por verdadeira; se aceito o que lá está relatado como real.

Ora, pensando em termos puramente abstratos, há para mim diversas possibilidades de resposta, para além do sim ou do não. Posso, por exemplo, dar de ombros e dizer: “Não sei, pode ser verdade como pode não ser”. Posso ainda dizer: “Penso que é correta, se bem que, naturalmente, não posso ter absoluta certeza de que as coisas não tenham se passado de outro modo”. Talvez eu diga com absoluta segurança: “Não, não a aceito como verdade”, ou, formulando de modo positivo: “Tenho-a por falsa, por um erro, talvez uma mentira, uma blague”.

Mas meu “não” poderia ainda significar outra coisa, a saber: “Você me pergunta se eu creio no que está dito aí. Você achará engraçado: não, não creio, ainda que afirme que a notícia é verdadeira”. É que eu, por acaso, presenciei o fato narrado pela notícia, vi-o com meus próprios olhos e portanto, não creio mas sei que ela é verdadeira.

Finalmente, dá-se ainda a possibilidade de que eu, após alguns instantes, diga: “Sim, creio que as coisas se passaram exatamente como está narrado aí”. Talvez só diga isso depois de verificar quem é o redator ou qual o jornal que publicou essa notícia.

Com isso viemos dar, inadvertidamente, com as quatro clássicas formas fundamentais de tomadas de posição diante de uma situação, a saber: duvidar, opinar, saber, crer.

Aquele que sabe e aquele que crê têm algo em comum; ambos dizem: “Sim, isto é assim e não de outro modo”, isto é, ambos, sem reservas, têm o conteúdo objetivo de que se fala por verdadeiro e real.

Mas fé e saber, aquele que sabe e aquele que crê, diferenciam-se num outro ponto muito importante: o que sabe, conhece bem o conteúdo do informe; já o que crê, não conhece propriamente esse conteúdo. E como então pode ele dizer: “Sim, isto é assim e não de outro modo”? Nesse ponto reside toda a problemática do conceito “crer”, e não só a do conceito, mas também a da prática da fé. A dificuldade teórica de como se deve conceber a estrutura do ato de fé e também a dificuldade prática de como se pode justificar, realizar e responder pela fé como ato vital.

“Como pode aquele que crê dizer: sim, isto é assim e não de outro modo?”, minha resposta é: ele pode dizer isso porque se fia em outro que afirma o fato. Ao contrário de quem sabe, o que crê não tem que ver só com o fato, com o algo anunciado; ele, além disso – e até principalmente – tem que ver com um alguém, com a pessoa que dá testemunho, que anuncia, e na qual ele, que crê, confia.

Curiosamente, sobretudo nos debates teológicos, tem-se considerado que estes dois elementos do conceito (por um lado, ter por verdadeiro o conteúdo do enunciado; por outro, o assentimento confiado a uma pessoa) sejam por natureza dissociáveis. Martin Buber, por exemplo, afirmou que, na concepção judaica, a fé aponta para o elemento pessoal; enquanto a fé – como ele diz – greco-cristã enfatizaria exclusivamente o conteúdo.

Na verdade, porém, o que sempre se tem dito na grande tradição do pensamento cristão é: “Aquele que crê aceita o depoimento de alguém” e “A fé dirige-se sempre a uma pessoa”. Duas citações: a primeira procede de Tomás de Aquino; a segunda, de Lutero. Com isso se mostra que, seja como for, neste ponto não há divergências entre o modo de ver do reformador e o do último grande mestre da cristandade ocidental ainda não dividida.

Ora, naturalmente, este enlace entre “crer algo” e “crer em alguém” não deve ser entendido como uma amorfa contiguidade. Quem em sentido próprio crê, aceita um conteúdo como verdadeiro, como real, pelo testemunho de alguém; assim, a razão de que eu creia em algo é que creia em alguém. Quando isso não ocorre é que se trata de outra coisa, mas não de fé em sentido próprio.

Um delegado, por exemplo, que interroga os componentes de uma quadrilha, pode muito bem chegar a convencer-se de que este ou aquele depoimentos são válidos, e, assim, ter por verdadeiro algo que outro disse, mas aí não se trata de crer: ele não confia nos acusados.

Se ele tem por verdadeiros alguns depoimentos não é por crer nos acusados, mas sim, talvez, porque esses depoimentos – que devem ser feitos independente e separadamente – coincidem e não podem, portanto, estar carentes de fundamento.

E não é raro ocorrer que também no âmbito religioso se tenha por “crer” algo que na realidade é totalmente diferente da fé. E talvez, se engane aí até mesmo aquele que se pretende ser alguém que crê: ele aceita o ensinamento do cristianismo, ou uma parte dele, mas não porque essa doutrina seja testemunhada e afiançada pelo Logos de Deus que se revela, e sim, por achar, digamos, imponente a unidade da doutrina, ou porque o fascina a grandiosidade da concepção, ou porque se ajusta às suas próprias especulações sobre o mistério do mundo.

Esse homem, certamente, possuiria o conteúdo da fé cristã e o teria por verdadeiro mas – como certa vez se expressou Tomás de Aquino – alio modo quam per fidem, de outro modo que não o da fé.

E pode ser que enquanto estejam ausentes grandes tribulações de ânimo ele se tenha por um fiel cristão e também seja assim considerado pelos outros. Até o dia em que se dá um conflito, e o que até então era tido por verdadeiro subitamente vem abaixo e termina.

Mas isso que, dessa maneira, como se diz, “desmorona”, pode ser várias coisas: um modo próprio de filosofia de vida, uma ideologia qualquer do bel-prazer pessoal, respeito pela tradição, gosto pelo conservadorismo; mas nunca fé em sentido estrito.”

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Enio Starosky

Teólogo e educador | eniostarosky@gmail.com

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