Separada da mãe, a criança é lançada a um mundo estilhaçado.
Separada
da mãe, a criança é lançada a um mundo estilhaçado. A criança percorre manchas,
superfícies, cores, constata que, ao girar a cabeça, as coisas se movem;
observa que, emitindo sons, corpos se aproximam, a criança passa a brincar com
vagidos, risos, ruídos, levanta a mão para tocar a lua, para brincar com as
estelas. Um dia ela surpreende a imagem refletida no espelho, é e não é ela mesma,
junta pedaços de si e se constrói com admiração, com paixão, com amor. A
criança aproxima-se e se afasta. Compara o seu corpo, minúsculo, com o corpo da
mãe que a ampara, a criança domina e é dominada pela visão especular, vê mais
do que a pele refletida, vê o corpo que se destaca de outros corpos, sente-se
operativa, manipula objetos. Ao se compor, a criança se descobre sujeito de
ação. Os monstros das narrativas infantis apavoram para serem vencidos, a criança
identifica-se com príncipes, com princesas, com cavaleiros, com heróis. A
imagem que lhe devolve a superfície iluminada acena com braços atléticos, o que
é, mistura-se com o que há de ser, com o que poderia ser, com o que já foi –
triunfa a vida.
O
corpo tende a desintegrar-se na vida cotidiana. Somos dilacerados por
solicitações distantes, aparelhos requerem nossa presença em muitos lugares ao
mesmo tempo, compomos um rosto jovem e jovial contra o desgaste, difundimos
imagens idealizadas, afundamos anônimos na multidão, ignoramos a presença de
pessoas próximas, amigos virtuais vêm e vão sem corpo, mensagens insípidas
circulam de ninguém a ninguém.
A luz
que ilumina o corpo de Cristo orienta os que marcham; o corpo de Cristo, ao
projetar sombra sobre o passado, dá sentido a atos cometidos em outros tempos,
a corpos que labutam agora. O sangue derramado em sacrifícios antigos tem
sentido à luz do sacrifício de Cristo, a lei do amor interpreta determinações
encarregadas de afastar o diabólico, a devastação. O corpo de Cristo está
presente nos que se aproximam da Ceia para celebrar a união.
A voz
de Cristo soa aos ouvidos de desgarrados, o esfacelamento não é necessário nem
é fatal. Fomos feitos à imagem de Deus; frequentemente negada e vilipendiada, em
risco está a obra divina; construo-me atento a projetos divinos, na unidade
convergem todos: dou ouvidos a súplicas, auxilio carentes, combato a violência,
afasto a indiferença, aproximo o que se dispersa. O prazer de dar reside na
ação de dar, afastada de outras recompensas. Paulo – ao afirmar que já não
existe homem nem mulher, nem judeu nem grego, nem escravo nem livre – anula
limites incorretamente estabelecidos; aquém e além de exclusões opera o corpo de
Cristo. Somos quem somos em Cristo, diferenças atuam no mesmo corpo, diferentes
concorrem na atuação do mesmo corpo. Somos
um só corpo. (Rm 12.5). Cristo
redime, eleva e dinamiza corpos que com propósitos comuns se articulam nele;
chamados, desempenhamos funções vitais para o bem de muitos.
O
corpo de Cristo atua no mundo para o benefício de todos. Em lugar de
fragmentos, de conquistas, de agressões, de humilhações, a unidade. Para os que
ingressam no corpo de Cristo a morte depõe a agressão apavorante, morrer é reviver.
Morte e vida, tidos como polos em conflito, convergem num encadeamento de
etapas (eons) sem fim. Os chamados
estão registrados no livro da vida, relação de todos os que atuam no corpo de
Cristo, o livro da vida alinha na mesma categoria tanto assinalados em façanhas
excepcionais quanto gente a ser lembrada em atividades cotidianas, o corpo
dignifica a ação de membros, células, átomos. A criança construída diante da
imagem de Cristo vive nos que vivem em Cristo. O corpo de Cristo acolhe sem
desfazer o que somos. Importa que viva a criança que fomos no corpo que somos,
que seremos.
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