Como pregar se os ouvintes são “casa rebelde”?


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15/10/2021 #Editora Concórdia #Artigos #Estudos #Exclusivo Assinantes

Lições extraídas do profeta Ezequiel

Como pregar se os ouvintes são “casa rebelde”?

Ezequiel é bastante conhecido entre nós – como nome. No Brasil, é um nome bem mais popular do que Jeremias, embora menos usado do que Isaías. No entanto, se estivermos interessados em Ezequiel, o profeta do Antigo Testamento, veremos que é, em grande parte, um ilustre desconhecido. De Isaías podemos dizer que é “o evangelista do Antigo Testamento”. Jeremias é chamado de “profeta chorão”. E como vamos caracterizar o profeta Ezequiel? Seria o profeta mudo? O excêntrico? O profeta esquecido? Na verdade, há muito que aprender com Ezequiel. Em tempos de “casa rebelde”, isto é, de gente que não quer ouvir, ele tem algo a nos dizer também sobre a comunicação da Palavra de Deus.

O Ezequiel da liturgia

A mensagem do profeta Ezequiel não é totalmente desconhecida entre nós. Na igreja, em vários momentos, lemos os seguintes trechos: Ezequiel 17.22-24 (“Uma promessa de restauração”), Ezequiel 18.1-4,25-32 (“A responsabilidade é pessoal”), Ezequiel 33.7-20 (“O dever do verdadeiro atalaia”), Ezequiel 34.11-24 (“O cuidado de Deus pelo seu rebanho”), Ezequiel 37.1-14 (“A visão de um vale de ossos secos”). No entanto, este é um Ezequiel editado. E isso leva a perguntar: “Qual o verdadeiro Ezequiel?” Chegaremos mais perto, se lermos o livro como um todo.

 

Singularidades e trechos difíceis

Ezequiel faz uso de linguagem difícil. Somando isso aos assuntos que são tratados, o livro desse profeta bíblico nos parece estranho e enigmático. Há quem diga que é o livro mais enigmático da Bíblia. (Muitos pensam que é o Apocalipse.) Quando a gente começa a ler Ezequiel, tudo muda, porque ele é único. Aliás, na Bíblia não existem dois livros iguais. Também não há dois profetas exatamente idênticos. Um dos trechos bíblicos mais difíceis de entender (ou visualizar) é a parte final de Ezequiel, os capítulos 40 a 48. Ali aparece a descrição de uma planta baixa de um prédio (o novo Templo), sem que se tenha um desenho em mãos. É claro que estudiosos fizeram desenhos, mas, mesmo olhando para uma ilustração dessas, não é nada fácil visualizar aquela sequência de átrios, portões, vestíbulos, escadas etc.

Além disso, temos ainda palavras chocantes e trechos que soam ofensivos. Ezequiel se dirige ao povo de Deus, que, em parte, já estava no cativeiro, na Babilônia, cinco séculos antes de Cristo. O problema daquele povo de Deus do passado era a idolatria. Era um tempo bem diferente do atual, marcado por agnosticismo e indiferença espiritual. No mundo bíblico não havia ateus; havia, sim, um excesso de deuses. Ezequiel tem tanto nojo dos ídolos que os chama de “montinhos de esterco” (ver Ez 6.4; em hebraico, guillulim; nossas traduções dizem apenas “ídolos”). Além disso, na Bíblia, a idolatria é muitas vezes descrita como prostituição espiritual. Dentro desta linha de pensamento, e para acordar os seus ouvintes, Ezequiel emprega descrições chocantes, que podem até ser descritas como “material não recomendado para menores de 14 anos”. Refiro-me aos capítulos 16 e 23. No entanto, se colocarmos uma tarja sobre o capítulo 16, por exemplo, ficaremos sem uma das mais belas descrições bíblicas do amor incondicional e ilimitado de Deus, que é Ezequiel 16.1-14!

 

Profeta cantor

Um texto em Ezequiel deixa entrever que os profetas de Israel tinham muito de músicos e cantores repentistas. Em 2Reis 3.15, por exemplo, Eliseu, ao ser consultado a respeito de uma palavra da parte de Deus, pediu a presença de um músico. E o texto continua: “Enquanto o músico tocava, o poder de Deus veio sobre Eliseu”. No caso de Ezequiel, veja este texto de Ezequiel 33.30-33: “Quanto a você, filho do homem, os filhos do seu povo falam de você junto às paredes e nas portas das casas, dizendo um ao outro, cada um ao seu irmão: ‘Venham, vamos ouvir a palavra que procede do SENHOR’. Eles vêm até você, como o povo costuma vir, assentam-se diante de você como meu povo e ouvem as suas palavras, mas não as põem em prática. [...] Para eles você não passa de alguém que canta canções de amor, tem uma bela voz e é um bom músico, porque ouvem as suas palavras, mas não as põem em prática. Mas, quando isso vier – e certamente virá –, então saberão que um profeta esteve no meio deles”. Hoje, as pessoas dizem: “Como ele prega bem!” Mas a pregação não faz diferença na vida de muitos.

 

Profeta mudo e ator de teatro de rua

Um dos aspectos interessantes do ministério de Ezequiel é que ele ficou mudo durante um longo tempo (veja Ez 3.26 e 23.21-22), a não ser quando tinha uma palavra de Deus a proclamar (Ez 3.27). Este poderia ser um bom modelo para os ‘profetas’ de hoje, sempre prontos a opinar sobre todas as questões contemporâneas. Deveriam calar, falando apenas quando a mensagem é “Assim diz o SENHOR Deus!”

Não necessariamente para compensar o mutismo, Ezequiel tinha mensagens encenadas, mais ou menos como um ator de teatro de rua. Veja, por exemplo, este trecho de Ezequiel 12.3-6: “Filho do homem, prepare a bagagem de exílio e durante o dia, à vista deles, vá para o exílio. Do lugar onde você está, vá para outro lugar, à vista deles. Talvez eles entendam, embora sejam casa rebelde. À vista deles, durante o dia, traga para fora a sua bagagem de exílio. Depois, à tarde, saia, à vista deles, como se estivesse indo para o exílio. Abra um buraco na parede, à vista deles, e saia por ali. À vista deles, ponha a bagagem nos ombros e saia com ela quando já for escuro. Cubra o rosto para que você não possa ver o chão, porque eu fiz de você um sinal para a casa de Israel”. E, mesmo que o povo não tivesse perguntado o motivo daquele ato, Deus pediu que Ezequiel explicasse: “Diga: Eu sou um sinal para vocês. Como eu fiz, assim será feito com eles; irão para o exílio, para o cativeiro” (Ez 12.11). Ezequiel acaba por redefinir a famosa frase de Marshall McLuhan: “O meio é a mensagem”. (Veja também Ez 4.1-8; 5.1-4,11-12.)

 

Ezequiel como contador de parábolas

Em Ezequiel 20.49, o profeta faz algo que o aproxima de seu colega Jeremias: ele se queixa diante de Deus. Ezequiel desabafa: “Ah! Senhor DEUS! Eles ficam dizendo que eu só sei contar parábolas!” E, de fato, há um grande número de parábolas no livro de Ezequiel. Mas parábolas não são sempre as parábolas “de Jesus”? Jesus contou parábolas como mais ninguém, mas ele não foi o primeiro. Natã tinha uma parábola para Davi (2Sm 12), e Ezequiel é mestre contador de parábolas.

Uma dessas parábolas é leitura prevista para um dos cultos, na Série Trienal B (Ez 17.22-24). Trata-se de uma promessa de restauração, em que a ponta de um cedro (o renovo) anuncia a restauração do povo exilado e, num momento posterior, a vinda do reino de Deus (Mc 4.30-32). Os textos chocantes dos capítulos 16 e 23 são, na verdade, parábolas estendidas, apresentando de modo figurado a história do povo de Deus, em especial a sua rebelião contra Deus. Os capítulos finais (Ez 40-48) são uma longa parábola em que se fala da restauração do Templo de Deus, que se cumpriu (e ainda espera cumprimento pleno) na obra de Cristo, o novo Templo (Jo 2.21).

A lista de parábolas é longa, mas uma das minhas favoritas é a parábola do leão enjaulado, em Ezequiel 19. É uma lamentação sobre os príncipes (reis) de Israel. A leoa nessa história é o reino de Judá e os leõezinhos são os reis Joacaz e Joaquim, que foram levados ao cativeiro (ver 2Rs 23.31-34 e 24.15). Este é o texto: “Que bela leoa entre os leões era a sua mãe! Deitada entre os leõezinhos, criou os seus filhotes. Criou um dos seus filhotinhos, que, ao se tornar um leãozinho, aprendeu a despedaçar a presa; chegou a devorar gente. Quando as nações ouviram falar dele, o apanharam na cova que fizeram, e ele foi levado com ganchos para a terra do Egito. Vendo frustrada e perdida a sua esperança, a leoa pegou outro dos seus filhotes e o fez leãozinho. Este, andando entre os leões, veio a ser um leãozinho e aprendeu a despedaçar a presa; chegou a devorar gente. Destruiu palácios e arrasou cidades. A terra e os seus moradores ficaram assustados, ao ouvirem o seu rugido. Então se ajuntaram contra ele os povos das províncias vizinhas. Estenderam sobre ele a rede, e ele foi apanhado na cova que fizeram. Com ganchos, meteram-no dentro de uma jaula e o levaram ao rei da Babilônia. Deixaram-no preso, para que nunca mais se ouvisse o seu rugido nos montes de Israel” (Ez 19.2-9). Um texto sensacional! (Para mais parábolas, veja os títulos de seção em edições da Bíblia. Cito Ezequiel 15.1-8: “A videira inútil”; 17.1-21: “As duas águias e a videira”; 24.1-14: “A panela”.)

 

Profeta da esperança

Ezequiel foi também um profeta que apontou para o futuro. Anunciou a vinda do Messias, um “novo Davi”, que seria pastor e rei (Ez 34.23-24; 37.24-25; ver paralelos em Jr 23.5-6 e Jo 10.11). Anunciou a restauração do povo de Deus, por meio do Espírito Santo (Ez 37). Essa restauração pressupõe uma transformação do povo, um novo coração (Ez 36.22-32).

 

Lições que Ezequiel ensina

Além de nos pregar lei e evangelho, Ezequiel tem lições a ensinar à igreja e seus pregadores. Faço uma breve lista:

1. Falar mesmo que não queiram ouvir, para que saibam que houve um profeta no meio deles. 2. A responsabilidade da atalaia é avisar.

3. Como igreja e pregadores, falar sempre (e só) a Palavra de Deus.

4. Usar todos os meios disponíveis, inclusive parábolas faladas e parábolas encenadas.

5. Não ter medo de ‘acordar’ os ouvintes.

 

Fica claro que, para descobrir esse Ezequiel, precisamos ir além do Ezequiel editado, que aparece nas leituras feitas no culto. Minha sugestão é que você leia o livro de Ezequiel de ponta a ponta. De preferência, numa tradução que você nunca leu antes. Recomendo a Nova Almeida Atualizada.

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Vilson Scholz

Professor de Teologia no Seminário Concórdia vscholz@uol.com.br

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