A oferta da viúva pobre ilustra a “oferta total”, o que significa amar o Senhor Deus (Mc 12.30) e confiar nele acima de todas as coisas.
Na igreja, costumamos ler textos
bíblicos em pequenos recortes. Em linguagem mais técnica, dizemos que são perícopes.
Não é o ideal, mas, se não quisermos em cada culto ler um livro bíblico inteiro
ou a Bíblia toda, temos de ler trechos recortados. Mas temos um evangelho do
Novo Testamento que recebe destaque a cada ano, e que neste momento ainda é
Marcos. Assim, podemos olhar as leituras de vários domingos ao mesmo tempo, numa
sequência, evitando aquilo que gosto de chamar de ‘pericopite’. Neste estudo,
quero ler em conjunto os textos de Marcos que estão previstos para dois domingos:
31 de outubro (Mc 12.28-37) e 7 de novembro (Mc 12.38-44). A intenção é ver
como esse trecho forma um todo e, ao mesmo tempo, prega a mensagem da Reforma.
Se você conferir em sua Bíblia, verá que
Marcos 12.28-44 engloba quatro histórias diferentes, com os seguintes títulos:
O grande mandamento; O Cristo, filho de Davi; Jesus censura os escribas; A oferta
da viúva pobre. A junção de dois relatos numa única leitura já ajuda a evitar,
em parte, o isolamento indevido das perícopes. Mas é possível ler tudo como um
trecho só.
O
jeito de ser dos evangelhos
Antes de entrar no estudo, cabe uma
palavra sobre o jeito de ser dos evangelhos. Não é segredo que, pelo menos na
parte inicial, Mateus, Marcos e Lucas não passam de pequenas unidades ou histórias
colocadas umas ao lado das outras. Por que essas histórias aparecem na ordem em
que se encontram? Por exemplo, por que a pergunta de Jesus a respeito do filho
de Davi (Mc 12.35-37) vem logo depois da discussão sobre o grande mandamento
(Mc 12.28-34)? E o que o episódio da viúva pobre tem a ver com o fato de Jesus
ter censurado os escribas? Não temos uma resposta definitiva para essas
perguntas, e as opiniões se dividem. Alguém poderia dizer que os evangelhos
refletem a sequência dos acontecimentos. No entanto, o fato de os três relatos nem
sempre terem a mesma sequência é um complicador. Na verdade, fazer esse tipo de
pergunta é como querer investigar a geologia de um local. “Como se formou essa
ilha? É resultado de atividade vulcânica?”. Nosso interesse deveria estar
voltado para a geografia. “Veja o belo cenário que temos à nossa frente!”. Explico
que, aplicado ao texto bíblico, a geologia é a pergunta sobre o surgimento dos
textos, enquanto a geografia é o exame do texto tal qual se encontra diante de
nós. Há os biblistas mais radicais, que pensam que essas histórias dos evangelhos
eram como um baralho, um monte de cartas esparramadas pelo chão, que foram recolhidas
e deixadas na ordem aleatória em que se encontravam. Mas, numa visão bem mais
realista (e otimista), podemos dizer que, ao escrever, os evangelistas tinham um
plano e um ponto de vista. Cada autor de evangelho sabia o que estava fazendo e
tinha uma intenção ao fazer o que fez. Os evangelhos têm, no mínimo, uma
sequência cronológica ampla, trazendo primeiro isto, depois aquilo, e, na
última parte, o final da história. Vamos, então, examinar o efeito da colocação
dessas pequenas histórias uma após a outra, em Marcos 12.
O
grande mandamento (Mc
12.28-34)
Jesus estava em Jerusalém, no pátio do
templo. (Lembre que a entrada se deu em Marcos 11.) Nessa assim chamada “semana
santa”, ocorreram discussões entre Jesus e os líderes do povo judeu (Mc 11.27).
Um dos escribas, que tinha ouvido a discussão entre Jesus e os saduceus (Mc
12.18-27), vendo que “Jesus tinha dado uma boa resposta” (v. 28), trouxe uma
questão. Os escribas ou mestres da lei eram os teólogos daquela época.
Portanto, ele veio com uma pergunta teológica. E a pergunta não era uma nonada
qualquer. Era uma pergunta com a qual os eruditos se ocupavam intensamente.
“Qual é o principal de todos os mandamentos?”. A pergunta já vinha com um viés,
como de resto acontece com a maioria das perguntas que fazemos. Na visão dos
fariseus, com a qual a maioria dos escribas simpatizava, todos os mandamentos (e
os estudiosos judeus isolaram 613 mandamentos dentro da lei) eram igualmente
importantes, porque cada mandamento, mesmo o menor deles, oferecia a oportunidade
de obedecer e, em razão disso, obter um olhar favorável da parte de Deus. Mas,
é claro, havia aqueles que discordavam, dizendo que devia existir uma
hierarquia de mandamentos. Jesus deu uma resposta lapidar, resumindo a lei (e
quem hoje não sabe isso?) em “Amar o Senhor Deus” e “Amar o próximo”.
O que significa essa resposta de Jesus?
Além de sintetizar a lei e colocar o mais importante em primeiro lugar, Jesus
afirma a lei. Ele não respondeu: “Esqueçam esse negócio de lei de Deus. Importa
mesmo saber que Deus é amor e que no final ele aceitará todo mundo”. A lei é
sempre a lei de Deus. E a teologia da Reforma, que ensina que a Palavra de Deus
nos vem em lei e evangelho, reafirma que “a lei é santa e o mandamento é santo,
justo e bom”, como Paulo diz em Romanos 7.12.
O
Cristo, filho de Davi (Mc
12.35-37)
Encerrada a conversa com o escriba,
informa-nos o evangelista que “ninguém mais ousava fazer perguntas a Jesus” (Mc
12.34). Mas isso não significava que Jesus não podia fazer perguntas! E,
convenhamos, as perguntas (bem como as respostas) de Jesus são mais importantes
do que as nossas perguntas. Jesus tinha uma pergunta a respeito do Cristo (o
“Messias”). Os escribas (Jesus tinha acabado de conversar com um deles) diziam
que o Messias seria filho de Davi. “Filho” no sentido de descendente. Na
verdade, esse conhecimento era algo como que “de domínio público”. Como rei, o
Messias só poderia vir da linhagem de Davi. Mas Jesus decide complicar a
situação a partir de uma palavra de Davi, num salmo, que para nós é o salmo 110.
Nesse salmo, Davi, que era também profeta (afinal, ele “falou pelo Espírito
Santo”), refere-se ao futuro Messias (a quem chama de “meu senhor”) e afirma
que “o Senhor” (isto é, o SENHOR Deus) pediu a esse Messias para sentar-se à
sua direita. Uau! Sentar-se à direita de Deus é ser o “copiloto” dessa “aeronave”
que se chama Universo. Portanto, se o Messias é Senhor de Davi, como pode ser
“filho de Davi”? (Jesus não esperava uma resposta, pois queria apenas levar a
refletir. Mas, se algum afoito quisesse responder, teria de dizer: O Messias é
as duas coisas: filho de Davi e Senhor de Davi.)
Qual a importância da questão
proposta por Jesus? Podemos apontar para diferentes aspectos. A pergunta que
Jesus fez, relacionada com o Cristo, precisa ser lida em conjunto com a
pergunta a respeito da lei. Junto com a lei, depois da lei, e acima da lei
encontra-se o evangelho. Jesus mostra, pela questão proposta, que, depois de
conversar a respeito da lei de Deus, é preciso focalizar o Cristo de Deus. A Reforma
traz esta ênfase. Além disso, Jesus mostra que o Messias é bem maior do que
muitos esperavam e muitos ainda pensam. O maior descendente de Davi? Sim. O
maior líder que já existiu? Sim. Mas também muito mais do que isso. O evangelho
não seria “boa notícia”, se o Messias não fosse quem Jesus afirmou que ele era.
Um Cristo que fosse apenas filho de Davi não poderia ser Rei dos reis e Senhor
dos senhores. Alguém que fosse apenas mais um de nós não poderia ser o nosso Salvador.
Jesus
censura os escribas (Mc
12.38-40)
Continuando a ensinar, Jesus faz um
alerta contra os escribas. Esta é, agora, a terceira referência a escribas (vs.
28, 35, 38). Parece cair por terra a tese de que as pequenas unidades dos evangelhos
são um ajuntamento aleatório, pois existe um vínculo entre as peças. (Restará
saber como a viúva, no quarto episódio, se encaixará nesse quadro.) Jesus
afirma que os escribas gostavam de andar com vestes talares, gostavam das
saudações nas praças, buscavam os primeiros lugares nos banquetes e devoravam
as casas das viúvas (sim, as viúvas) por baixo de um manto de piedade. E
conclui: “Estes sofrerão juízo muito mais severo”.
Ficou chocado? De fato, cabe
perguntar: “Como pode Jesus dizer algo assim? Que história de juízo é essa? Denunciar
orgulho e hipocrisia não fere o que chamamos de politicamente correto? O que
Jesus tem a ver com a vida dos outros?” (O orgulho é pensar, “Nós é que somos
os tais!”; a hipocrisia é mostrar-se religioso e agir de um modo que desmente a
religiosidade.) Jesus faz a denúncia teológica. Aquele que veio do Alto e hoje
está à direita de Deus podia (e pode) muito bem falar assim. Mas isto ainda não
é tudo. Ao denunciar o orgulho e a hipocrisia, Jesus anuncia o tema de uma música
que seria tocada (e ainda é tocada) no volume máximo dentro da pregação da
Reforma. Diante de Deus, ninguém é melhor ou pior, pois somos todos iguais
debaixo da lei e da ira de Deus. Todos somos igualmente pecadores. Pretender o
contrário resulta em hipocrisia. Nossa “grandeza” está unicamente em Cristo.
“Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”. E, é claro, disso resultam orações
(sinceras, diga-se de passagem) e o cuidado das viúvas (e de todos os outros
necessitados).
A
oferta da viúva pobre (Mc
12.41-44)
Falando em viúvas exploradas pelos
escribas, deixem-me falar sobre uma delas. (Esta parece ser a intenção do
evangelista, ao continuar a narrativa com a história da viúva pobre.) Conta-nos
o evangelista que, “sentado diante da caixa de ofertas, Jesus observava como o
povo lançava ali o dinheiro”. Viu que muitos ricos depositavam grandes
quantias. Mas o que lhe chamou a atenção foi uma viúva pobre. (Precisava dizer
que a viúva era pobre? Viúvas raramente eram ricas, ainda mais naquela época). Ela
ofertou duas moedinhas de pouco valor. Jesus sabia que isso era tudo o que ela
tinha. Como os outros ofertaram o que sobrava, era claro que a viúva “lançou na
caixa de ofertas mais do que todos os ofertantes”. (O valor da oferta se mede
pelo que a pessoa guarda para si, e não pelo que ela dá.)
Além do vínculo entre viúvas
exploradas e uma viúva que ofertou tudo o que tinha, de que maneira este
relato se liga ao contexto? E como se conecta com a mensagem da Reforma? Alguém
dirá que a viúva colocou em prática a “oferta proporcional”. Na verdade, ela
ilustra a “oferta total”. Ela deu tudo. Assim, ela ilustra o que significa amar
o Senhor Deus (Mc 12.30) e confiar nele acima de todas as coisas. Ela abriu mão
das dádivas e passou a viver da bondade do Doador. Ela viveu o Primeiro Mandamento,
o mais importante de todos.
E
depois?
Depois vem o assim chamado “sermão
profético”, em Marcos 13. Depois de uma viúva desprezível, coisas grandiosas: o
templo, Jerusalém, o mundo. O contraste não poderia ser maior. Mas, assim como
a viúva ficou sem nada, tudo isso também irá acabar. No entanto, este tipo de
relação apenas se percebe, se o Evangelho é lido na sequência, sem
fracionamento, sem ‘pericopite’, deixando as histórias na sequência em que o
evangelista as colocou.
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Aos poucos, algumas pessoas foram se juntando a esse grupo, outras foram reconquistadas, e hoje, oito anos depois, aqui estamos, com a bênção e força de nosso Deus, retomando a missão nos Campos ...