A Reforma num recorte de Marcos 12


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05/11/2021 #Estudos #Editora Concórdia #Devocionais #Exclusivo Assinantes

A oferta da viúva pobre ilustra a “oferta total”, o que significa amar o Senhor Deus (Mc 12.30) e confiar nele acima de todas as coisas.

A Reforma num recorte de Marcos 12

Na igreja, costumamos ler textos bíblicos em pequenos recortes. Em linguagem mais técnica, dizemos que são perícopes. Não é o ideal, mas, se não quisermos em cada culto ler um livro bíblico inteiro ou a Bíblia toda, temos de ler trechos recortados. Mas temos um evangelho do Novo Testamento que recebe destaque a cada ano, e que neste momento ainda é Marcos. Assim, podemos olhar as leituras de vários domingos ao mesmo tempo, numa sequência, evitando aquilo que gosto de chamar de ‘pericopite’. Neste estudo, quero ler em conjunto os textos de Marcos que estão previstos para dois domingos: 31 de outubro (Mc 12.28-37) e 7 de novembro (Mc 12.38-44). A intenção é ver como esse trecho forma um todo e, ao mesmo tempo, prega a mensagem da Reforma.

Se você conferir em sua Bíblia, verá que Marcos 12.28-44 engloba quatro histórias diferentes, com os seguintes títulos: O grande mandamento; O Cristo, filho de Davi; Jesus censura os escribas; A oferta da viúva pobre. A junção de dois relatos numa única leitura já ajuda a evitar, em parte, o isolamento indevido das perícopes. Mas é possível ler tudo como um trecho só.

 

O jeito de ser dos evangelhos

Antes de entrar no estudo, cabe uma palavra sobre o jeito de ser dos evangelhos. Não é segredo que, pelo menos na parte inicial, Mateus, Marcos e Lucas não passam de pequenas unidades ou histórias colocadas umas ao lado das outras. Por que essas histórias aparecem na ordem em que se encontram? Por exemplo, por que a pergunta de Jesus a respeito do filho de Davi (Mc 12.35-37) vem logo depois da discussão sobre o grande mandamento (Mc 12.28-34)? E o que o episódio da viúva pobre tem a ver com o fato de Jesus ter censurado os escribas? Não temos uma resposta definitiva para essas perguntas, e as opiniões se dividem. Alguém poderia dizer que os evangelhos refletem a sequência dos acontecimentos. No entanto, o fato de os três relatos nem sempre terem a mesma sequência é um complicador. Na verdade, fazer esse tipo de pergunta é como querer investigar a geologia de um local. “Como se formou essa ilha? É resultado de atividade vulcânica?”. Nosso interesse deveria estar voltado para a geografia. “Veja o belo cenário que temos à nossa frente!”. Explico que, aplicado ao texto bíblico, a geologia é a pergunta sobre o surgimento dos textos, enquanto a geografia é o exame do texto tal qual se encontra diante de nós. Há os biblistas mais radicais, que pensam que essas histórias dos evangelhos eram como um baralho, um monte de cartas esparramadas pelo chão, que foram recolhidas e deixadas na ordem aleatória em que se encontravam. Mas, numa visão bem mais realista (e otimista), podemos dizer que, ao escrever, os evangelistas tinham um plano e um ponto de vista. Cada autor de evangelho sabia o que estava fazendo e tinha uma intenção ao fazer o que fez. Os evangelhos têm, no mínimo, uma sequência cronológica ampla, trazendo primeiro isto, depois aquilo, e, na última parte, o final da história. Vamos, então, examinar o efeito da colocação dessas pequenas histórias uma após a outra, em Marcos 12.

 

O grande mandamento (Mc 12.28-34)

Jesus estava em Jerusalém, no pátio do templo. (Lembre que a entrada se deu em Marcos 11.) Nessa assim chamada “semana santa”, ocorreram discussões entre Jesus e os líderes do povo judeu (Mc 11.27). Um dos escribas, que tinha ouvido a discussão entre Jesus e os saduceus (Mc 12.18-27), vendo que “Jesus tinha dado uma boa resposta” (v. 28), trouxe uma questão. Os escribas ou mestres da lei eram os teólogos daquela época. Portanto, ele veio com uma pergunta teológica. E a pergunta não era uma nonada qualquer. Era uma pergunta com a qual os eruditos se ocupavam intensamente. “Qual é o principal de todos os mandamentos?”. A pergunta já vinha com um viés, como de resto acontece com a maioria das perguntas que fazemos. Na visão dos fariseus, com a qual a maioria dos escribas simpatizava, todos os mandamentos (e os estudiosos judeus isolaram 613 mandamentos dentro da lei) eram igualmente importantes, porque cada mandamento, mesmo o menor deles, oferecia a oportunidade de obedecer e, em razão disso, obter um olhar favorável da parte de Deus. Mas, é claro, havia aqueles que discordavam, dizendo que devia existir uma hierarquia de mandamentos. Jesus deu uma resposta lapidar, resumindo a lei (e quem hoje não sabe isso?) em “Amar o Senhor Deus” e “Amar o próximo”.

O que significa essa resposta de Jesus? Além de sintetizar a lei e colocar o mais importante em primeiro lugar, Jesus afirma a lei. Ele não respondeu: “Esqueçam esse negócio de lei de Deus. Importa mesmo saber que Deus é amor e que no final ele aceitará todo mundo”. A lei é sempre a lei de Deus. E a teologia da Reforma, que ensina que a Palavra de Deus nos vem em lei e evangelho, reafirma que “a lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom”, como Paulo diz em Romanos 7.12.

 

O Cristo, filho de Davi (Mc 12.35-37)

            Encerrada a conversa com o escriba, informa-nos o evangelista que “ninguém mais ousava fazer perguntas a Jesus” (Mc 12.34). Mas isso não significava que Jesus não podia fazer perguntas! E, convenhamos, as perguntas (bem como as respostas) de Jesus são mais importantes do que as nossas perguntas. Jesus tinha uma pergunta a respeito do Cristo (o “Messias”). Os escribas (Jesus tinha acabado de conversar com um deles) diziam que o Messias seria filho de Davi. “Filho” no sentido de descendente. Na verdade, esse conhecimento era algo como que “de domínio público”. Como rei, o Messias só poderia vir da linhagem de Davi. Mas Jesus decide complicar a situação a partir de uma palavra de Davi, num salmo, que para nós é o salmo 110. Nesse salmo, Davi, que era também profeta (afinal, ele “falou pelo Espírito Santo”), refere-se ao futuro Messias (a quem chama de “meu senhor”) e afirma que “o Senhor” (isto é, o SENHOR Deus) pediu a esse Messias para sentar-se à sua direita. Uau! Sentar-se à direita de Deus é ser o “copiloto” dessa “aeronave” que se chama Universo. Portanto, se o Messias é Senhor de Davi, como pode ser “filho de Davi”? (Jesus não esperava uma resposta, pois queria apenas levar a refletir. Mas, se algum afoito quisesse responder, teria de dizer: O Messias é as duas coisas: filho de Davi e Senhor de Davi.)

            Qual a importância da questão proposta por Jesus? Podemos apontar para diferentes aspectos. A pergunta que Jesus fez, relacionada com o Cristo, precisa ser lida em conjunto com a pergunta a respeito da lei. Junto com a lei, depois da lei, e acima da lei encontra-se o evangelho. Jesus mostra, pela questão proposta, que, depois de conversar a respeito da lei de Deus, é preciso focalizar o Cristo de Deus. A Reforma traz esta ênfase. Além disso, Jesus mostra que o Messias é bem maior do que muitos esperavam e muitos ainda pensam. O maior descendente de Davi? Sim. O maior líder que já existiu? Sim. Mas também muito mais do que isso. O evangelho não seria “boa notícia”, se o Messias não fosse quem Jesus afirmou que ele era. Um Cristo que fosse apenas filho de Davi não poderia ser Rei dos reis e Senhor dos senhores. Alguém que fosse apenas mais um de nós não poderia ser o nosso Salvador.

 

Jesus censura os escribas (Mc 12.38-40)

            Continuando a ensinar, Jesus faz um alerta contra os escribas. Esta é, agora, a terceira referência a escribas (vs. 28, 35, 38). Parece cair por terra a tese de que as pequenas unidades dos evangelhos são um ajuntamento aleatório, pois existe um vínculo entre as peças. (Restará saber como a viúva, no quarto episódio, se encaixará nesse quadro.) Jesus afirma que os escribas gostavam de andar com vestes talares, gostavam das saudações nas praças, buscavam os primeiros lugares nos banquetes e devoravam as casas das viúvas (sim, as viúvas) por baixo de um manto de piedade. E conclui: “Estes sofrerão juízo muito mais severo”.

            Ficou chocado? De fato, cabe perguntar: “Como pode Jesus dizer algo assim? Que história de juízo é essa? Denunciar orgulho e hipocrisia não fere o que chamamos de politicamente correto? O que Jesus tem a ver com a vida dos outros?” (O orgulho é pensar, “Nós é que somos os tais!”; a hipocrisia é mostrar-se religioso e agir de um modo que desmente a religiosidade.) Jesus faz a denúncia teológica. Aquele que veio do Alto e hoje está à direita de Deus podia (e pode) muito bem falar assim. Mas isto ainda não é tudo. Ao denunciar o orgulho e a hipocrisia, Jesus anuncia o tema de uma música que seria tocada (e ainda é tocada) no volume máximo dentro da pregação da Reforma. Diante de Deus, ninguém é melhor ou pior, pois somos todos iguais debaixo da lei e da ira de Deus. Todos somos igualmente pecadores. Pretender o contrário resulta em hipocrisia. Nossa “grandeza” está unicamente em Cristo. “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”. E, é claro, disso resultam orações (sinceras, diga-se de passagem) e o cuidado das viúvas (e de todos os outros necessitados).

 

A oferta da viúva pobre (Mc 12.41-44)

            Falando em viúvas exploradas pelos escribas, deixem-me falar sobre uma delas. (Esta parece ser a intenção do evangelista, ao continuar a narrativa com a história da viúva pobre.) Conta-nos o evangelista que, “sentado diante da caixa de ofertas, Jesus observava como o povo lançava ali o dinheiro”. Viu que muitos ricos depositavam grandes quantias. Mas o que lhe chamou a atenção foi uma viúva pobre. (Precisava dizer que a viúva era pobre? Viúvas raramente eram ricas, ainda mais naquela época). Ela ofertou duas moedinhas de pouco valor. Jesus sabia que isso era tudo o que ela tinha. Como os outros ofertaram o que sobrava, era claro que a viúva “lançou na caixa de ofertas mais do que todos os ofertantes”. (O valor da oferta se mede pelo que a pessoa guarda para si, e não pelo que ela dá.)

            Além do vínculo entre viúvas exploradas e uma viúva que ofertou tudo o que tinha, de que maneira este relato se liga ao contexto? E como se conecta com a mensagem da Reforma? Alguém dirá que a viúva colocou em prática a “oferta proporcional”. Na verdade, ela ilustra a “oferta total”. Ela deu tudo. Assim, ela ilustra o que significa amar o Senhor Deus (Mc 12.30) e confiar nele acima de todas as coisas. Ela abriu mão das dádivas e passou a viver da bondade do Doador. Ela viveu o Primeiro Mandamento, o mais importante de todos.

 

E depois?

            Depois vem o assim chamado “sermão profético”, em Marcos 13. Depois de uma viúva desprezível, coisas grandiosas: o templo, Jerusalém, o mundo. O contraste não poderia ser maior. Mas, assim como a viúva ficou sem nada, tudo isso também irá acabar. No entanto, este tipo de relação apenas se percebe, se o Evangelho é lido na sequência, sem fracionamento, sem ‘pericopite’, deixando as histórias na sequência em que o evangelista as colocou.

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Vilson Scholz

Professor de Teologia no Seminário Concórdia vscholz@uol.com.br

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