Nos ensinam a sermos mais que ouvintes ou leitores, senão também praticantes da viva Palavra de Deus
A epístola de Tiago, o irmão do
Senhor, tem sido, desde os primórdios da igreja cristã, uma das mais discutidas
ou disputadas entre os estudiosos bíblicos. E não é para menos. Sendo uma
epístola com tão fortes exortações à prática do bem e da vontade de Deus, por
vezes, é entendida como indo na contramão do que escreveu o apóstolo Paulo
quanto à salvação “independentemente das obras da lei” (Rm 3.28). Uma epístola
que não fala de fé.
Nosso próprio patrono, Martinho
Lutero, o qual pregava constantemente na igreja de Wittenberg, valeu-se da
epístola, ao que parece, não mais do que cinco vezes como referência para o
sermão. Ele a intitulou “epístola de palha”. Com isso, Lutero queria dizer que
se trata de uma epístola boa e útil por trazer a lei de Deus – que é
importante. Por outro lado, é uma epístola de pouco valor quando comparada com
os demais escritos do Novo Testamento, uma vez que pouco fala acerca de Cristo.
Como se faltassem os “grãos” dentro da “palha” – o que é ainda mais importante.
A maior dificuldade, em todo
caso, parece girar em torno da questão a respeito da necessidade das boas obras
ou boas ações ao lado da fé. Isso é tópico constante do início ao fim, embora
mais enfatizado no capítulo 2, onde encontramos este clássico versículo:
“Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta” (v.17).
Muitos cristãos entendem, com
base nesse capítulo, que as boas obras devem necessariamente caminhar ao lado
da fé como requisito para o alcance da salvação. Apegam-se, consequentemente,
não só a Cristo, o Salvador, mas também a outras ordenanças. E terminam por
depositar a certeza da sua salvação no fato de praticarem tais obras, cumprirem
certas ordenanças ou absterem-se disso e daquilo. Em outras palavras:
transformam a si mesmos em seus salvadores. Anula-se a fé, o arrependimento e,
consequentemente, a obra salvadora de Cristo.
O apóstolo Tiago não está
ensinando doutrina diferente dos demais livros neotestamentários. Para
confirmar isso, basta perceber que não é o único a pedir por boas obras, vida
santificada, discipulado. Olhando para os ensinamentos de Jesus, veremos que também
ele muito abordou sobre a prática do bem, do amor e da vontade de Deus. A
primeira epístola de João também é muito profunda ao defender que quem é filho
de Deus faz a vontade de Deus, ama o próximo e cumpre os mandamentos. Pedro não
deixa por menos, trazendo duas epístolas que falam não apenas da obra de Jesus,
mas ainda de vocação cristã. Finalmente, o mesmo Paulo que defendeu tão bem a
salvação pela graça de Deus, no mínimo conclui suas epístolas com admoestações
práticas do exercício da fé.
Ao que parece, a dificuldade do
texto é gerada pela maneira como Tiago escreve, podendo dar a entender coisa
diferente. Pode ser que uma das razões para a confusão advenha do termo
“obras”. A Bíblia na Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) preferiu
“ações”. Em todo caso, a dificuldade pode permanecer. Logo, temos diante de nós
mais do que um texto a ser compreendido, senão que um desafio a ser encarado
com seriedade, humildade e grande medida do Espírito Santo.
Antes de mais nada, um
princípio básico de interpretação deve ser posto em prática: ler o texto dentro
do texto. Isto é, não ler alguma parte em detrimento do todo. Não obstante a fé
fique um tanto camuflada na epístola por suas tantas considerações e exemplos
práticos, ela está lá desde o início (1.3; 1.6; 1.8) e vai percorrendo toda a
epístola (2.1; 2.5; 2.14; 4.4; 5.15).
Assim, se a epístola fosse um
quadro, a fé seria a moldura que segura o quadro todo. Não podemos (ou, pelo
menos, não deveríamos) observar os diferentes assuntos de um livro sem levar em
consideração o quadro como um todo. Por exemplo: se excluíssemos o capítulo 2
do livro de Tiago, sem dúvida teríamos uma leitura completamente diferente da
epístola.
Em segundo lugar, outro
princípio é igualmente importante aqui: A analogia da fé. Se o primeiro
princípio é ler cada capítulo como parte de um livro, analogia da fé não é
outra coisa senão ler um livro como parte de um conjunto maior. Neste caso, a
Bíblia ou, no mínimo, o Novo Testamento. A importância disso se dá por nos
impedir de aceitar uma compreensão de determinado texto, caso este entre em
choque com o ensino dos outros livros bíblicos, ainda que aquela possibilidade
tenha nos vindo à mente durante a leitura.
Assim sendo, ao lermos que a fé
sem obras é morta, não aceitaremos como correta interpretação que as boas obras
são necessárias como garantia de salvação, ainda que tal possibilidade tenha
passado pela nossa cabeça, pois não é isso que sustenta o Novo Testamento como
um todo. Talvez levantar algumas perguntas possa auxiliar, tal como: O que
sabemos sobre as boas obras? Bem, sabemos que as obras da vida cristã seguem
imediatamente à fé. Elas sempre estão ali. É a fé que justifica o pecador,
mesmo assim não está sozinha. Ou seja, desde que alguém creia, Deus realizará
através dessa pessoa as obras que ele tem preparado para que nelas se andasse
(Ef 2.10). Finalmente, esse ensino que é dado em todo o Novo Testamento nos
permite “trocar os óculos” para uma melhor leitura de Tiago 2, bem como de toda
a epístola.
Baseados nesses princípios, ao
lermos que a fé sem obras é morta, não entenderemos que precisamos passar a
praticar mais boas obras para termos uma fé viva, e sim que uma fé cuja vida
não reflete naturalmente o “buscar em primeiro lugar o reino de Deus” é uma fé
morta, isto é, uma fé inexistente ou falsa, que no máximo diz “Deus existe”, pois
a verdadeira fé concedida pelo Espírito Santo é sempre viva e, como já dizia
Lutero, esta fé não pergunta pelas obras a realizar, pois antes que pergunte se
já as realizou.
Ninguém pratica boas obras para
dar vida a uma fé morta. Nós não temos esse poder. Só pode dar vida aquele
que possui a vida. Só o Espírito de Deus pode dar a fé viva. Essa fé nos levará
a andar (não por coerção ou em busca de salvação) nas obras que Deus tem preparado
para que andemos nelas, e nessas obras que Deus prepara (não nós!) ele exercita
a fé que nos deu, mantendo-nos próximos do Caminho que leva ao céu.
Vale lembrar que os primeiros
leitores de Tiago, provavelmente eram cristãos que passaram a negligenciar a
prática da fé, como se tivessem recebido a fé tão somente para aguardar o dia
do juízo e serem salvos. Esse público deve nos ajudar a entender tanto o
conteúdo quanto o tom do autor da epístola. Portanto, vale lembrar que se um
cristão olhar com sinceridade para sua vida e perceber carência de boas obras,
nas mais diferentes esferas, cabe a ele que se coloque com toda a humildade e
rogo diante de Deus e peça que lhe sustente a fé e lhe permita uma vida mais
ativa na prática da fé. (Acredito que todos nós acabaríamos fazendo isso!)
Em suma, as obras não são
nossas, mas preparadas por Deus. Ele quer, sim, que andemos nelas. E o que
Tiago faz não é diferente do que fazem os outros autores bíblicos, em especial
das epístolas: Nos ensinam a viver a fé. Nos ensinam a sermos mais que ouvintes
ou leitores, senão também praticantes da viva Palavra de Deus.
Como ouvi de um pastor num
congresso: A premissa para ler Tiago não é “se vocês querem ser cristãos,
então...” (façam isso e mais isso), e sim, “já que vocês são cristãos, então
façam isso e mais isso como resultado da fé que receberam”. É a Palavra de Deus
nos convidando a seguirmos firmes em nossa caminhada, sem perder o foco que é
refletir Cristo e sua Palavra, até que possamos ouvir do querido Pai: servo bom
e fiel, agora já podes descansar.
Edenilson Gass
Teólogo
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