Elogio ao ócio, o pensamento e a escola


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29/03/2022 #Artigos #Exclusivo Assinantes #Reflexão

Convido-o a abandonar a ilusória verdade de que não há valor no ócio e a desconfiar do absolutismo do trabalho.

Elogio ao ócio, o pensamento e a escola

Todos os anos, nos meses de janeiro ou de fevereiro, a maioria dos brasileiros tira alguns dias ou um tempo de férias. É um período especial para descansar, para lazer, para estar mais perto da família. Um tempo de ócio, de não fazer nada.

Embora aqui e ali, nos últimos anos, tenhamos visto referências positivas às férias, a esse tempo de “não fazer nada”, ainda é quase impossível imaginar – devido à nossa mentalidade profundamente “trabalhista” – um elogio ao ócio (skholé) e uma séria reprimenda ao totalitarismo do mundo do trabalho que, negativa e compulsivamente, se ocupa do negócio (neg-otium).

No entanto, neste primeiro contato com o leitor do Mensageiro Luterano em 2022, quero convidá-lo a refletir sobre o ócio, uma vez que ele remete a questões educacionais fundamentais. Convido-o a abandonar a ilusória verdade de que não há valor no ócio e a desconfiar do absolutismo do trabalho. Sobretudo porque em nosso país é corrente o pensamento de que o ano “começa só em março”, “depois do carnaval”.

As sugestivas implicações para a educação já provêm até mesmo da etimologia: estudar, estudo, é (real e) etimologicamente (studio) zelo, aplicação, dedicação de quem ama o que faz.

E “escola” remete a skholé (otium, ócio). Skholé, para Aristóteles – e para toda a tradição grega – nada tem que ver com o ócio vazio, a ociosidade “mãe de todos os vícios”, mas trata-se, antes, de algo de fundamentalmente positivo e essencial: a atitude de serena festa da alma que se deleita na contemplação da verdade, despertada pelo olhar de admiração. Assim, a skholé não se reduz a “tempo livre”; é, como dizíamos, uma disponibilidade do espírito para admirar e contemplar a maravilha da criação. Nesse sentido, a opressão do excesso de trabalho (e trabalheiras da vida) podem dificultar o cultivo dessa atitude (fomentada pelo terceiro mandamento da Lei de Deus).

Skholé é condição sine qua non para o filosofar, e a admiração (de acordo com a tradição grega e do pensamento cristão) é mesmo o princípio não só do filosofar, mas também da poesia (do “poetar”) e da contemplação religiosa.

 

Cai muito bem aqui aquele verso genial de Adélia Prado:

“De vez em quando Deus me tira a poesia.

Olho pedra e vejo pedra mesmo.”

 

Studio, estudar, é o entusiasmo com que o ator faz a interpretação perfeita de seu personagem; é o carinho com que um Rogério Ceni, por exemplo, em dia inspirado, acariciava a bola e tomava distância para cobrar a falta que já sabia que seria um golaço. E se skholé é festa da alma, então nosso estudo e nossas escolas nem sempre correspondem ao que deveriam ser. Na maioria das vezes o estudo é visto como algo árduo, e há muitas escolas que lembram presídios – com suas grades e alunos perguntando que horas o professor vai “soltar” a classe. A falta de studio e da skholé está por trás de problemas de indisciplina, vandalismo, bullying etc. Infelizmente as escolas que melhor realizam o ideal clássico de skholé e studio são só as escolas de samba! Nelas, milhares de integrantes participam com amor e espontaneidade e não medem sacrifícios em seu alegre devotamento à escola.

A educação cristã (e não só ela...) pode ser imensamente mais rica se estiver assentada na skholé e no mirandum (aquilo que suscita a admiração). Para isso não é necessário inventar nada: basta recuperar seu sentido originário, ou, parafraseando a célebre sentença de Píndaro: “Escola, torna-te o que és”.

Mas isso já é assunto para nosso próximo artigo.

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Enio Starosky

Teólogo e educador | eniostarosky@gmail.com

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