Ao pedir que chamemos Deus de Pai, Jesus estabelece uma nova relação entre Deus e os seres humanos.
“Pai-nosso que estás nos céus...” No
mês em que comemoramos o Dia dos Pais vale refletir sobre o profundo
significado de podermos chamar nosso Deus de Pai. O texto bíblico de Romanos
8.15 traz esta maravilhosa notícia, ao dizer que recebemos do Espírito Santo
“... o espírito de adoção, baseados no qual clamamos Aba, Pai”. Numa tradução
mais literal, “aba, pai” quer dizer “pai, meu pai!”, ou, segundo alguns
exegetas, uma forma ainda mais íntima de comunicação, como “papai” ou
“paizinho”.
Ao pedir que chamemos Deus de Pai, Jesus
estabelece uma nova relação entre Deus e os seres humanos, que afasta a ideia
de um deus soberano, longínquo e inacessível. Jesus fortalece (ou inaugura) a
relação de intimidade, trazendo Deus para perto de nós, a partir de um
chamamento familiar, afetivo e protetor. Martinho Lutero explica no Catecismo
Maior, que, ao chamarmos Deus de Pai, “Deus quer nos atrair carinhosamente para
crermos que ele é nosso verdadeiro Pai e nós, os seus verdadeiros filhos, para
que lhe roguemos sem temor, com toda a confiança, como filhos amados ao querido
pai”.
Mas o tema deste breve artigo quer
refletir sobre um aspecto específico dessa relação, apontando para o quanto a
face de Deus, o Pai Celeste, nos é inicialmente apresentada a partir da face do
meu pai, o pai terreno.
A obra do psiquiatra e psicanalista
John Bowlby, autor da Teoria do Apego, irá
demonstrar que as primeiras relações do ser humano com as figuras parentais –
aqueles que exercem a função paterna e materna – são fundamentais para a saúde
mental da criança, tendo forte impacto sobre os vínculos e relacionamentos que
os indivíduos terão ao longo de toda a sua vida. Os vínculos de ligação
emocional e relacional com as figuras importantes na vida da criança têm,
portanto, o poder de criar “trilhas” para relacionamentos futuros, gerando
configurações vinculares que influenciam as relações intrapessoais e
interpessoais por toda a vida adulta.
Numa
transposição para o nosso tema, o teólogo e conselheiro cristão James Loder
afirma que o primeiro rosto de Deus será apresentado à criança por intermédio
da face de seus pais ou cuidadores. Nessa “apresentação”, está se falando de
algo que é muito anterior à compreensão racional sobre quem é Deus e sobre o
que ele realiza em nosso favor. Fala-se aqui de uma linguagem mais primitiva e
simbólica, uma linguagem de reconhecer-se no outro pelo olhar, que leva ao
estabelecimento da confiança básica da criança no seu cuidador.
O
facear dos pais, em sua presença física e real, portanto, precisa ser sentido
como uma linguagem postural e atitudinal que transmita acolhimento, amor e
proteção, pois ela age como um protótipo para o estabelecimento de novas
relações com o outro, inclusive as relações com Deus e o sagrado.
Na
obra As faces do perdão: buscando cura e
libertação, os autores destacam este aspecto, de que as primeiras
experiências faciais mostradas pelos cuidadores contribuem para a formação de
representações internas que fazemos da face de Deus, afetando a nossa atribuição
de emoções ao ser divino. Nesse sentido, se o facear dos pais foi de
reconhecimento, acolhimento, amor e proteção à criança, inspirando confiança, a
chance do “rosto” de Deus ser associado ao amor e proteção paternos será mais
facilmente internalizada quando for apresentada a um Deus que se revela como
nosso Pai Celestial.
O fato
é que a presença amorosa do outro é mediada, em grande medida, pelo fato de
facearmos uns aos outros. O rosto humano é um mediador simbólico e encarnado da
comunicação intersubjetiva, que molda episódios relacionais importantes na vida
dos sujeitos, inclusive de questões profundamente teológicas como segurança e
confiança em Deus, perdão e salvação.
Por
tudo isso, não é apenas importante o facear dos pais na construção das relações
do ser humano com Deus. Na perspectiva bíblica da “consolação mútua e do
diálogo fraterno”, a face de cada cristão precisará ser uma face que reconhece,
que acolhe, que inspira confiança e que anuncia o amor e o perdão diante da
presença do pecado e do sofrer humano. Não serão poucas as vezes em que o
cristão precisará agir poimenicamente como um conselheiro, desconstruindo uma
eventual imagem distorcida de Deus, um deus de face única, julgador, punitivo,
severo e controlador, ensinado e vivido por alguns pais desde as primeiras
relações vinculares.
A
história do reformador Martinho Lutero é um exemplo do que falamos aqui, visto
ter vivenciado uma enorme dificuldade em se relacionar amorosamente com Deus.
Lutero só conhecia um Deus controlador e punitivo, apresentado a ele pelos
pais, pela igreja e por toda a religião da época. Quase todos os vínculos
relacionais de Lutero lhe apresentavam um deus opressor e não libertador. A
face de Deus, para Lutero, era uma face terrorífica, como ele próprio sinaliza:
“eu
não amava o Deus justo, que pune os pecadores; ao contrário, eu o odiava. Mesmo
quando, como monge, eu vivia de forma irrepreensível, perante Deus, eu me
sentia pecador, e minha consciência me torturava muito. Não ousava ter a
esperança de que pudesse conciliar a Deus através de minha satisfação”.
Lutero,
na sua caminhada teológica e espiritual, é tocado pela Palavra de Deus e começa
a desconstruir essa imagem terrorífica de Deus. Pela ação do Espírito Santo,
ele é apresentado ao Deus da graça, do amor e do perdão libertador, e isso,
teologicamente, é uma ação misericordiosa de Deus em favor dos pecadores, um extra nos, pro nobis. Porém, neste
processo de ressignificação para a verdadeira e consoladora face de Deus, não
podemos desconsiderar o papel do confessor e conselheiro de Lutero, Johann von
de Staupitz. Como seu pai espiritual, Staupitz talvez tenha agido como a
primeira máscara de Cristo, ou o primeiro rosto que apresentou a Lutero a face
amorosa e redentora de Deus, permitindo uma relação restaurativa de Lutero com
o antigo Deus da ira.
Voltando
ao título de nosso artigo, precisamos reconhecer, como sinalizam estudos do
famoso psiquiatra Harry Sullivan, que há fortes indicativos de que grande parte
dos problemas psíquicos e sociorrelacionais dos indivíduos, inclusive nas
relações com Deus-Pai, são consequência de relacionamentos conturbados com
outras pessoas. Porém, do mesmo modo, Sullivan afirma que boa parte do
crescimento pessoal e das curas para tais danos também passariam pelo
estabelecimento de novos relacionamentos, porém agora positivos, com pessoas
significativas.
Em
meio a tantos vínculos e relações não saudáveis, marcados por falta de amor,
manipulações, indiferença, opressão e violência, em meio a todas as nossas
inúmeras fraquezas e pecados, Deus quer usar a nossa face, os nossos rostos, as
nossas palavras, e as nossas atitudes como instrumentos vivos para anunciar a
boa-nova do evangelho.
Diante
dessa afirmação, decorre a importância de refletirmos sobre “A face de Deus PAI
no rosto do meu pai”. Na realidade, todos nós, sejamos pais, educadores,
líderes, pastores ou simplesmente irmãos na fé, cada cristão em particular,
precisa dar-se conta de que, em algum momento poderá ser a máscara de Cristo
para o outro, apresentando a face amorosa de Deus, encarnada na obra redentora
de seu Filho Jesus.
Referências
bibliográficas
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Gary R. Aconselhamento cristão:
edição século 21. São Paulo: Vida
Nova, 2004.
HEIMANN,
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e Teologia. Canoas: Ulbra, 2016.
LUTERO,
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In: ____, Obras Selecionadas, v.8.
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Enrique. Teoria do Vínculo. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SANDAGE,
Steven J; SHULTS, F. Leron. Faces do
perdão: buscando cura e salvação. Rio de Janeiro, CPAD, 2012.
Thomas Heimann*
Pastor e psicólogo
São Leopoldo, RS
*Heimann é reitor da ULBRA, Canoas, RS. Doutor
em teologia, professor de graduação e pós-graduação na área da Psicologia e
Aconselhamento Pastoral. Coautor e organizador de diversas publicações, entre
elas: Aconselhamento Pastoral – Reflexões e práticas sob a ótica da
cruz, recém-lançado pela Editora Concórdia.
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