Rir é o melhor remédio? Nem sempre: depende daquilo de que rimos, com quem rimos e com que propósito o fazemos.
Aristóteles,
filósofo grego, já afirmava que o homem é o único animal que ri. De fato, há
entre os animais certas posturas que parecem com um sorriso e sons que se
assemelham a gargalhadas. Mas cuidado: o sorriso de um chipanzé pode ser uma
ameaça, um sinal para se afastar, assim como as aparentes gargalhadas das
hienas. Rir de verdade mesmo, como expressão de uma percepção humorística das
coisas, é um dom divino que somente nós recebemos.
Mas
como tudo o que é bom pode ser pervertido pelo pecado, também ocorre com nosso
humor. Apesar de estar presente em todos os seres humanos e em todas as
culturas, rimos de formas muito diferentes. Temos variados motivos e intenções
e geramos consequências diversas ao rir, muitas delas que nem mesmo percebemos
conscientemente. Como já afirma o historiador Georges Minois, o riso é coisa
séria demais para ser deixado apenas para os cômicos. Há articulações
emocionais e relações sociais que tecemos através do humor ao longo dos séculos,
e nem todas elas são inocentes ou benéficas. O humor pode tanto aproximar como
afastar.
Rir é
o melhor remédio? Nem sempre: depende daquilo de que rimos, com quem rimos e
com que propósito o fazemos. O nosso humor pode ser também sintoma de
enfermidades, medos e frustrações que carregamos na alma. Hipócrates, aquele do
juramento, considerado o pai da medicina ocidental, já se interessava pelos
aspectos fisiológicos do nosso humor. Em sua teorização, chamada de “humoralismo”,
descrevia os humores como fluídos corporais que oscilam, fazendo nossos ânimos
e nossa saúde oscilarem também. Humores mal equilibrados, no limite, poderiam
levar até à loucura.
Seguindo
a tradição dos gregos, muitos filósofos se interessaram pelo humor ao longo do
tempo. Uma das descrições interessantes do porquê rimos é que o humor é como um
jogo, que se baseia em duas situações com as quais gostamos de brincar: a
incongruência e a superioridade. Em outras palavras, jogamos com nosso modo de
expressar histórias, sensações e ideias de modo a revelarmos o que é
incongruente na vida – na nossa e dos outros. E, não raramente, ao nos
expressarmos dessa forma, nos colocamos como superiores às situações ou às
pessoas com quem convivemos.
Para
entender melhor, vamos aplicar esses conceitos de incongruência e superioridade
em termos próprios de nossa fé cristã: o nosso mundo, após o pecado, tornou-se
contraditório, impreciso, desequilibrado. Isso faz com que, no fundo, todo ser
humano tenha uma percepção de que as coisas estão bagunçadas, fora do lugar, de
ponta-cabeça e sem sentido. Isso nos dá insegurança e medo, pois gostamos de
ver sentido em tudo o que fazemos ou sofremos. O humor e o riso se encaixam e
nossa vida como importante fonte de alívio, diminuindo as tensões e nos fazendo
encarar a vida com mais leveza – ou, ao menos, ajuda a renovar o ânimo para
enfrentarmos as dificuldades.
Além
disso, quando rimos, nunca o fazemos sozinhos. Como dizia o filósofo Henri
Bergson, há sempre conosco uma multidão de outros sujeitos ridentes, sejam reais
ou imaginários. Já pensou que as coisas ou pessoas das quais você acha graça
não foram escolhidas exatamente por você, mas pela sociedade que o cerca? É por
isso que o nosso humor tupiniquim é diferente do humor britânico – e os dois
guardam sua própria genialidade. Mas o riso também é uma forma que encontramos,
como sociedade, de demarcar e sinalizar aquilo que não gostamos ou queremos
evitar. Rimos como forma de fortalecer nossa identidade, e muitas vezes isso
acontece apelando para uma superioridade que imaginamos ter sobre os outros e
sua forma de viver.
Aqui
entra um dos aspectos que as pessoas mais resistem a admitir: nosso riso não é
sempre gentil e inocente, não é apenas um jogo de aproximação com os outros. A
exemplo dos chimpanzés e das hienas, também rimos para afastar, estigmatizar e
ameaçar. Sempre há um potencial de violência simbólica no riso. Se você acha
que uma simples piadinha não faz mal nenhum, meu irmão, está na hora de ser
honesto, olhar para dentro de verdade e parar de enganar a si mesmo, como diz o
apóstolo João. Queremos ser como o justo plantado à beira do riacho, na imagem
bela descrita no primeiro dos salmos, mas passamos tempo demais na roda dos
escarnecedores.
Felizmente
o humor tem, graças ao nosso Deus de alegria, também um aspecto redentor. Quem mostra
isso é o sociólogo de origem luterana Peter Berger. Diante das incongruências,
medos e frustrações da vida, rir é como se lançar para uma província longe da
realidade por alguns instantes. É como escapar deste mundo pesado e sem sentido
e nos elevar, com certa esperança, para outro lugar, para um sitiozinho cheio
de sentido e graça. Rir reforça nossa percepção de que este mundo, como está,
não é, não pode ser, o destino final. É por razões semelhantes que outro grande
pensador luterano, Søren Aabye Kierkegaard, acreditava que o riso era uma das
práticas humanas que mais se aproxima da fé.
Durante
muito tempo, é verdade, o cristianismo foi resistente ao riso, por considerar
uma marca de pecado, associando-o à dúvida. Os tempos antigos e medievais foram
marcados por uma luta da igreja contra o humor e as demonstrações de alegria,
que eram associadas pelos teólogos aos prazeres da carne. João Crisóstomo, lá
no século 4, já dava impulso ao mito de que Jesus nunca riu, e esse se tornou
quase um dogma (para quem não viu o filme ou leu o livro, é extremamente
recomendado nesse sentido o célebre “O nome da rosa”, de Umberto Eco).
A
partir da Reforma, porém, a represa do riso, que já estava trincada, foi
ficando cada vez mais cheia de buracos. Lutero e os seus apoiadores usavam da
ironia, abusavam da sátira, das paródias e charges. E o outro lado também
passou a fazê-lo, até com certa habilidade. Nem os esforços puritanos dos
séculos posteriores conseguiram segurar o retorno do riso às salas de aula, aos
templos e às pregações. E hoje, como vivemos em uma sociedade humorística,
parece que rir e fazer rir tornou-se não apenas tolerável e aceito, mas também
obrigatório. Outro perigo, pois, como canta Frejat, “rir é bom, mas rir de tudo
é desespero”.
Atualmente,
na esteira da midiatização da sociedade, pregadores hábeis no humor recebem grande
visibilidade e importância. Afinal, a gente vive, se expressa e constrói
significados segundo lógicas midiáticas, e isso não é muito diferente na vida
das igrejas. O desafio é perceber se todo esse riso está conduzindo ao
evangelho de amor e promovendo a aproximação e o acolhimento, ou se apenas anda
reforçando barreiras, preconceitos e visões ilusórias de superioridade dos
crentes sobre os demais que habitam este mundo. Chamar para rirmos juntos de
nós mesmos – e fazer isso dentro do abraço de Cristo – é diferente de eu debochar
de você, da sua cor, dos seus dilemas ideológicos, morais ou sexuais e depois
querer que você se sinta como meu irmão.
“Tenham
sempre alegria”, dizia Paulo aos Filipenses, mas é “unidos com o Senhor”. Se
aprendermos a rir mais de nós mesmos e a rir com os outros, ao invés de apenas
zombar dos outros, quem sabe essa dimensão redentora do riso possa nos
aproximar ainda mais do humor que Jesus, que de fato nos redimiu, quer que
tenhamos: o riso para aliviar a tensão e chamar atenção para a alegria da fé; o
riso para se aproximar e solidarizar com os dilemas do próximo; o bom humor
para encarar as dificuldades da vida e, quem sabe, como desejaram muitos
filósofos, rir até na cara da morte, pois ela não tem mais a vitória sobre nós.
Herivelton Regiani
Pastor em Natal, RN
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