Na história da Teologia cristã, fazemos uma
classificação útil, apesar de tender ao simplismo perigoso. Dizemos que há uma “escola
de Alexandria (Egito)” que enfatizava a natureza divina de Jesus e sua segunda
vinda. Era mais celestial e escatológica, dizemos. Ela fazia contraponto à “escola
de Antioquia” que, por sua vez, enfatizava a natureza humana de Jesus e sua
caminhada na terra. Era mais terrena, dizemos.
Pois bem, tenho duas filhas, uma de cada escola.
Akemi é da escola de Alexandria. Fica encantada com histórias que mostram o
poder de Jesus e a glória de Deus. “Deus tem nome”, diz ela, “e é Jesus”.
Errado não está, né, Cirilo? “Nossa, Jesus é Deus, mas morreu! Ele é muito
amoroso mesmo pra aceitar isso”, disse certa vez. Além de gostar da divindade
de Cristo, ela é “escatológica”, pois deve ser a maior arquiteta que a Nova
Jerusalém já teve. Já mapeou vários quilômetros quadrados da morada celeste.
Depois que meu avô morreu confessando a fé cristã como um dos últimos atos de
vida (essa história conto outro dia), ela disse aliviada: “Agora Jesus pode
voltar, se ele quiser”. Akemi curte pula-pula, adora brincar com os amigos, mas
ela parece sempre saber que há um “mundo vindouro” muito melhor.
Stella, minha mais nova, é da escola de Antioquia.
Mesmo com dois anos de idade, já se percebe que ela fica entediada com
histórias da glória e poder divinos. Ela gosta da pesca maravilhosa não porque
Jesus mostrou poder, mas porque os três “hominhos precisavam de peixinho”. Ela
viu um crucifixo na Catedral de São Bento da cidade de São Paulo e disse,
consternada: “Oh, tadinho do Jesus... Tá muito dodói...”.
A diferença aparece também na hora de dormir. Em
casa, temos o costume de ninar as meninas com as Vésperas, uma antiga ordem
litúrgica, hinos e canções. A Akemi canta toda a ordem das Vésperas com
atenção, especialmente o Nunc Dimitis, o cântico mais celestial, por assim
dizer, que diz: "Senhor, despedes em paz o teu servo, segundo a tua
Palavra". Akemi sendo Akemi. A Stella, por sua vez, comumente pede para pular
o Magnificat, o Nunc Dimitis, dizendo: “Esse não. Outro”. Ela só sossega quando
chegamos nas canções. Esses dias cantamos pela primeira vez a canção “Faz
chover” do Fernandinho. Pra quê? Agora, quando a Stella diz “sede”, não sei se
ela quer água ou se quer cantar a música. Ontem mesmo, ao nos encaminharmos
para o quarto para dormir, ela foi categórica: “Quero ‘corça-sede’, não quero ‘Abre,
Senhor’” (“corça-sede” é parte da música “Faz Chover” e “Abre, Senhor” é o
início das Vésperas).
Sendo assim, decretamos que o momento de dormir,
agora, oficialmente é “blended”. Ainda bem que, mesmo cada uma delas tendo suas
preferências, nenhuma é radical ou polarizada, garças a Deus! Alexandria e
Antioquia conversam bem nessa casa tipicamente luterana.
Mario Rafael Fukue
Pastor da Hora Luterana