A
palavra “amor” anda tão esvaziada que, antes de mais nada, é necessário estabelecermos
alguns pontos essenciais, que remontam à tradição fundacional do Ocidente e do
próprio pensamento cristão. Para isso, seguiremos o luminoso tratado sobre o
amor do grande filósofo contemporâneo Josef Pieper (JP): Über
die Liebe.
Guimarães
Rosa dizia que as línguas são depositárias de antigos mistérios e sabedorias. O
grego e as línguas latinas distinguem com acuidade as formas e as sutilezas do
amor, mas quem pensa no que é amar, em si e em última análise, deve recorrer à
língua alemã, que dispõe de uma única palavra, Liebe, que, embora não nos dê acesso à variedade de amores, tem o
dom de focar-nos nessa essência última do amar. O fato de usarmos Liebe nas mais diversas instâncias (o
amor entre enamorados, pelo vinho, pelo time de futebol, para Deus, para o
necessitado que nos estende a mão etc.) como que nos leva ao que é fundamental
no amor: aprovação, pôr-se diante de quem é amado, ou do que é amado e dizer: “Que
maravilha que você está no mundo!”, “Que bom que você existe!”, (“Wie
gut dass Du in der Welt Bist; dass Du existierst”).
Assim,
amar é – é o que diz a experiência antropológica acumulada no alemão –, antes
de mais nada, aprovação, dizer “sim e Amém” à realidade que se ama. É o que nos
ensina também a tradição cristã, a criação é obra da Trindade: do Poder do Pai,
pela Inteligência do Verbo e pelo Amor do Espírito Santo. A Escritura nos fala
do ato criador do Espírito, quando vai proferindo os “wie gut” de Deus,
que viu que esse ser criado era bom, que aquele era bom e viu que o homem era
“muito bom”.
Nosso
tempo desvirtuou o amor, o “querer”, pensando-o primordialmente como “querer
fazer”, quando radicalmente é um querer simplesmente de aprovação, “querer
bem”, como dizia nossa encantadora expressão, infelizmente hoje quase em desuso
(o italiano ainda mantém o “ti voglio
bene” como a principal forma de dizer “eu te amo”; tal como o espanhol: “te quiero”).
E com isso tocamos num ponto que JP qualifica de “espantoso” e
que para muitos pode parecer teologicamente estranho: a “insuficiência” do amor
de Deus e a necessária continuação e aperfeiçoamento pelo amor humano. O que,
afinal, está bem de acordo com a belíssima percepção joanina (1Jo 4.20): “quem
não ama [e não é amado] seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus a quem não
vê”. JP diz: “Se considerarmos bem a questão, não deixa de ser surpreendente que ao homem não baste o puro e simples existir, o que, afinal, em todo caso já lhe é dado, independentemente de qualquer outra coisa,
independentemente inclusive de que alguém se volte para ele e lhe diga: ‘Que bom que você existe!’. Entretanto, é justamente desta confirmação explícita que carecemos. Além do puro existir, necessitamos também de ser amados. Isso, repito, é deveras
algo extremamente espantoso: o ser criado por Deus, em certo sentido, parece não ser suficiente. A obra criada necessita da continuação e da consumação que lhe é dada pelo poder criador próprio do amor humano. Isso, dizíamos, é assombroso; mas é-nos
confirmado por toda parte, através das experiências mais concretas que possamos vivenciar dia após dia e que se revelam através de modos de falar que nos são extremamente familiares. Acaso não dizemos, por exemplo: ‘Alguém floresce quando se vê amado’;
‘Só agora essa pessoa está sendo totalmente ela mesma’; ‘Para fulano começou uma vida nova’? (Cf. http://www.hottopos.com.br/notand4/crer.htm).
Para essa constatação – quase empírica – o cristão encontra
fundamento na própria Sagrada Escritura: Romanos (8.19 e ss.) fala que a
criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente e está em ansiosa
expectativa pela manifestação dos filhos de Deus. E Colossenses (1.15 e ss.)
fala do Verbo, Cristo, como Primogênito, Cabeça e Princípio, que tem em tudo a
primazia, pois nele aprouve a Deus reconciliar por ele e para ele todos os
seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz. Nesse sentido, recolho aqui
uma das mais marcantes passagens de aula do prof. Jean Lauand, um dos mais brilhantes
linguistas brasileiros – prof. titular sênior da USP): “Deus, que tem poder
para fazer das pedras filhos de Abrahão (Lc 3.8), quer contar com o amor
conjugal de João e Maria para criar uma nova vida. Deus, que poderia fazer as
crianças nascerem sabendo inglês e álgebra, quer contar com a tarefa educadora
dos professores. Deus quer contar com cristos-cidadãos que construam um mundo de
acordo com seu projeto. Com cristos-engenheiros que canalizem córregos (‘não
tem um Cristo para acabar com as enchentes em São Paulo?’), com cristos-médicos
que identifiquem o combate a tal vírus etc... [...] Neste mundo, em que tantos
estão desprovidos de qualquer motivação, a educação cristã – que sabe que
Cristo vive no cristão e está interessado em transformar toda a criação pela
ação dos cristãos – torna-se fascinante”.
Se
o amor é aprovação, é dizer “Que bom que você existe!”, o oposto do amor não é
apenas o ódio (infelizmente, hoje, tão em alta...), mas, sobretudo, a
indiferença, tal como na terrível sentença de Caim: “Acaso sou eu o guarda de
meu irmão?”.
Desde
esse ponto de vista da própria essência do amor, a própria educação torna-se
ininteligível fora dessa base: reduzir-se-ia a meras técnicas e práticas de
instrução, sem alma; para nós, porém, é, deve ser, a ação que ajuda a completar
a obra criadora da Trindade, do Logos e do Espírito Santo: para que cada um
possa realizar-se plenamente enquanto ser humano!
É
fato incontestável que há muitas distorções sobre o amor, que o ser humano não
nasce sabendo amar convenientemente e precisa ser educado para amar. Por isso é
necessário resgatar a importância do amor em todos os âmbitos da convivência
humana, também na atuação docente, e valorizá-lo como instrumento fundamental
para o ensino e fonte essencial da aprendizagem.
Acontece
que o ser humano esquece constantemente suas realidades essenciais, um dos
grandes males da atualidade. Somos seres “esquecentes”, esquecidiços e precisamos
ser permanentemente lembrados de quem somos.
No filme “Rei Leão”, há uma
cena deliciosamente sugestiva neste aspecto. Simba (o filho do rei Mufasa)
precisa escutar a voz do pai amoroso para não esquecer quem é. Precisa ser
encorajado a assumir a posição de filho do Rei: “Você se esqueceu de mim – e
porque se esqueceu de mim, também se esqueceu quem você é! Lembre-se de quem você
é – você é meu filho!”. Como pequenos e frágeis “Simbas”, repetidas
vezes precisamos ser lembrados de que somos filhos amados e queridos do
Criador. Precisamos sentir afiançada/garantida a nossa existência para poder
seguir nosso caminho confiantes e em paz! Mas quem nos poderá poupar da
entropia do esquecimento? Quem nos poderá libertar do terrível mal de esquecer
que somos filhos amados e queridos? Do angustiante pensamento de orfandade e do
medo do abandono?
Quanto
mais seriamente nos confrontarmos com estas questões, tanto mais reputaremos
como absolutamente necessária a prática de uma educação para o amor. A tarefa
de resgatar a consciência de quem de fato somos nos faz recordar a imemorável
sabedoria do “lembra-te
de quem tu és” (remember/merken), do antigo e grande
poeta Píndaro. Quando sabemos de cor (de coração) jamais esquecemos.
Aquilo que nos vai no coração, porque sentimo-nos amados, lembramos.
Infelizmente a banalização dos sentimentos ameaça seriamente as relações
humanas, por isso entendemos que o tema contribui significativamente para a discussão,
especialmente para os projetos pedagógicos em nossas escolas. (Esta reflexão
continua no Mensageiro Luterano –
edição março/2021).
Enio Starosky
Téologo e educador
eniostarosky@gmail.com