Antes
de prosseguir com nossas reflexões sobre a Educação para o Amor, devo introduzir um conceito
linguístico-filosófico-teológico da maior importância para o pensamento
cristão: “voz média”, que poderá iluminar também o mistério do amor. Faremos isso
seguindo de perto (e reproduzindo) as pesquisas de Jean Lauand, o filósofo
brasileiro que melhor estudou esse tema e de quem fui coautor do artigo no qual
especialmente me apoiarei: “Josef Pieper e C. S. Lewis: metodologia, linguagem e
amor” (“Convenit Internacional, n.12, CemorocFeusp, 2013).
A
“voz média” é, em si, um conceito muito simples e evidente, mas que, por conta
de séculos de esquecimentos herdados, tornou-se opaco e invísivel para nós. E é
que nossas gramáticas nos ensinam que a voz do verbo, a forma que este assume para indicar
que a ação verbal é praticada ou sofrida pelo sujeito, pode ser: “voz ativa” ou
“voz passiva”, se o sujeito é agente da ação ou paciente dela: “Os
pais educam o filho”/“O filho é educado pelos pais”.
A
dualidade ativa/passiva dá-nos a falsa impressão de cobrir toda a gama de
possibilidades (junto com uma “voz reflexiva”, na qual o sujeito pratica e
recebe a ação: “O caçador feriu-se”).
Infelizmente,
junto com tantas outras riquezas das línguas clássicas, perdemos também a “voz
média”. A insuficiência da dualidade ativa/passiva torna-se manifesta quando
consideramos certos verbos que não são ativos nem passivos: “nascer”, por
exemplo. Eu “nasço” ou “sou nascido”? O português considera o nascer ativo; o
inglês, passivo: “I was born”. Na verdade é um daqueles tantos casos ao mesmo
tempo ativos-passivos, ou seja, de voz média. Sim, há um lado ativo do bebê ao
“nascer”, mas é também evidente que ele “é nascido” pela parturiente...
Como
diz Lauand: “Com a
perda da voz média, o português perdeu não apenas um recurso de linguagem, mas
sobretudo um poderoso recurso de pensamento, de captação e expressão de imensas
regiões da realidade. De fato, é uma violência para com a realidade que
empreguemos, por exemplo, o verbo ‘surtar’ como ativo: ‘O Gilberto é psicótico,
ele surta a toda hora’. Como se o pobre Gilberto tivesse algum controle sobre
as situações que o fazem surtar... Como se ‘surtar’ (ou ‘admirar’ e outras
ações médias) pudesse ser ativamente ‘agendado’: “Na próxima 3ª. f. às 15h30 eu
vou surtar; às 19h, vou me admirar, etc.”.
É a consciência da voz média,
de que nossas principais ações não são só nossas, mas em interação com o outro
(e o Outro: Deus) e a criação, que nos faz abdicar da “arrogância do
protagonismo” e reconhecer a verdade da célebre sentença de Ortega y Gasset:
“Eu sou eu e minha circunstância; e se não a salvo, não me salvo eu”. Lembrete
que estes tempos de pandemia terrivelmente nos impõem.
Sem a
voz média, as igrejas enfrentariam muitas dores de cabeça teológicas. As
epístolas aos Coríntios apontam diversas vezes para esse beco, cuja única saída
é o ativo-passivo, Deus-homem, daí os malabarismos de adversativas do apóstolo
Paulo: “Porque eu
sou o menor dos apóstolos, e não sou digno de ser chamado apóstolo, porque
persegui a Igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou, e a graça
que ele me deu não tem sido inútil. Ao contrário, tenho trabalhado mais do que
todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1Co 15.9-10).
Com este pressuposto teórico, sobre o alcance da voz média para a
educação para o amor, falaremos na próxima
edição.
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