Apresentamos a segunda
parte da conferência do filósofo alemão Josef Pieper (falecido em 1997), sobre
o ato de crer e seu alcance antropológico.
Pieper mostra
surpreendentes conexões entre o crer e o amar, “cremos porque amamos”, para o
cristão – mas também fora do âmbito religioso e mesmo no relacionamento humano cotidiano
(evocando implicitamente, por contraste, os terríveis tempos do nazismo e do
“deutsche Blick”, o “olhar alemão”, quando ninguém podia confiar em ninguém).
E aprofunda na reflexão
de que a verdadeira e viva fé religiosa requer necessariamente a relação
pessoal do fiel com Deus, como um Alguém pessoal, capaz de falar.
Um elemento essencial
do conceito ‘crer’ vem expresso numa precisa sentença de Agostinho: Nemo
credit nisi volens, ninguém crê a não ser por livre vontade.
Para muitas coisas pode
o homem ser forçado, muito pode ele fazer constrangido; mas crer, só o pode se
quiser. Nesse ponto dá-se uma surpreendente unanimidade de Agostinho e Tomás de
Aquino a Kierkegaard, John Henry Newman e até mesmo André Gide. Nos últimos
escritos – ainda mais tardios que o famoso Diário – diz Gide: “Há nas
palavras de Cristo mais luz do que em qualquer fala de homem. Isto (e Gide
claramente quer dizer: pensar nisto, afirmar isto), contudo não basta para se
ser cristão. Para tanto, se requer ainda algo mais: crer. Ora, eu não creio”.
Que significa tudo
isso? Significa: há algo que um outro diz e que se considera interessante, sábio,
importante, genial, ou talvez simplesmente verdadeiro; e pode alguém sentir-se
arrastado a aceitar o que é expresso, com toda a sinceridade; mas uma outra
coisa, totalmente diferente, é assumir o mesmo conteúdo por fé no depoimento do
outro. Para tanto, é necessário – como diz Gide – “algo mais”: fazer um livre e
voluntário ato de assentimento. Assentimento à pessoa do outro que falou isto e
aquilo; quer dizer, deve-se estar do seu lado, dizer sim a ele, amá-lo.
We believe because
we love,
cremos porque amamos [e porque fomos amados primeiro]. Não se pode obter
fórmula mais breve e precisa do que esta de John Henry Newman nas conferências
na Universidade de Oxford. Mas não será isto – poder-se-ia objetar – um exagero
romântico? Não será “amor” palavra grandiosa demais para aplicar a um fato tão
comum como o de um homem acolher algo de outro, crer nele?
Antes de aceitar essas
objeções, deve-se, ao que me parece, procurar ver o fenômeno “crer” – também no
seu modo de realizar-se no cotidiano – sobre o escuro pano de fundo de uma
realidade contrastante.
Um contraste que de
modo algum é alheio à nossa experiência. Estou pensando na vida de relações
humanas sob as condições de um poder tirânico onde, como se costuma dizer,
“ninguém pode confiar em ninguém”: neste caso se emudece a comunicação simples
e espontânea e mesmo que se receba alguma informação não se sabe se é possível
ou não crer nela.
Quem pensa nisto repara
subitamente quão grande comunhão, solidariedade humana e mútua afirmação vem no
bojo do corriqueiro fato de que os homens falem entre si com simplicidade, que
um ouça ao outro e, como atitude básica – por assim dizer, até que se prove o
contrário – confie nele, creia nele.
Amor pode até ser uma
palavra um tanto grandiosa demais para designar essa mútua abertura de
vontades, mas imprópria não é.
Através dessa confiada
afirmação do interlocutor efetua-se uma comunhão – não há, aliás, outra forma
de a comunhão se realizar – uma comunhão de posse. O que ouve, o que crê,
participa do conhecimento que tem o que sabe. E quando, na tradição teológica,
se diz que a fé nos liga e nos traz o contato com o saber de Deus, com isso se
indica de modo muito preciso uma chance; uma chance que se abre a cada um que
crê naquele que é digno de fé: a chance de ver (o que com os próprios olhos
jamais poderia), com o olhar de Quem – sem intermediários – vê e sabe.
E com Quem o que crê se
identifica pelo amor.
Assine o mensageiro luterano e fique por dentro dessa e outras notícias
A Editora nasceu e quer ser sempre um referencial na produção e divulgação de material para formação, informação, pesquisa, adoração e edificação cristã