O que é crer?


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28/09/2021 #Editora Concórdia #Artigos #Exclusivo Assinantes #Reflexão

(uma antropologia da fé – parte 2)

O que é crer?

Apresentamos a segunda parte da conferência do filósofo alemão Josef Pieper (falecido em 1997), sobre o ato de crer e seu alcance antropológico.

Pieper mostra surpreendentes conexões entre o crer e o amar, “cremos porque amamos”, para o cristão – mas também fora do âmbito religioso e mesmo no relacionamento humano cotidiano (evocando implicitamente, por contraste, os terríveis tempos do nazismo e do “deutsche Blick”, o “olhar alemão”, quando ninguém podia confiar em ninguém).

E aprofunda na reflexão de que a verdadeira e viva fé religiosa requer necessariamente a relação pessoal do fiel com Deus, como um Alguém pessoal, capaz de falar.

Um elemento essencial do conceito ‘crer’ vem expresso numa precisa sentença de Agostinho: Nemo credit nisi volens, ninguém crê a não ser por livre vontade.

Para muitas coisas pode o homem ser forçado, muito pode ele fazer constrangido; mas crer, só o pode se quiser. Nesse ponto dá-se uma surpreendente unanimidade de Agostinho e Tomás de Aquino a Kierkegaard, John Henry Newman e até mesmo André Gide. Nos últimos escritos – ainda mais tardios que o famoso Diário – diz Gide: “Há nas palavras de Cristo mais luz do que em qualquer fala de homem. Isto (e Gide claramente quer dizer: pensar nisto, afirmar isto), contudo não basta para se ser cristão. Para tanto, se requer ainda algo mais: crer. Ora, eu não creio”.

Que significa tudo isso? Significa: há algo que um outro diz e que se considera interessante, sábio, importante, genial, ou talvez simplesmente verdadeiro; e pode alguém sentir-se arrastado a aceitar o que é expresso, com toda a sinceridade; mas uma outra coisa, totalmente diferente, é assumir o mesmo conteúdo por fé no depoimento do outro. Para tanto, é necessário – como diz Gide – “algo mais”: fazer um livre e voluntário ato de assentimento. Assentimento à pessoa do outro que falou isto e aquilo; quer dizer, deve-se estar do seu lado, dizer sim a ele, amá-lo.

We believe because we love, cremos porque amamos [e porque fomos amados primeiro]. Não se pode obter fórmula mais breve e precisa do que esta de John Henry Newman nas conferências na Universidade de Oxford. Mas não será isto – poder-se-ia objetar – um exagero romântico? Não será “amor” palavra grandiosa demais para aplicar a um fato tão comum como o de um homem acolher algo de outro, crer nele?

Antes de aceitar essas objeções, deve-se, ao que me parece, procurar ver o fenômeno “crer” – também no seu modo de realizar-se no cotidiano – sobre o escuro pano de fundo de uma realidade contrastante.

Um contraste que de modo algum é alheio à nossa experiência. Estou pensando na vida de relações humanas sob as condições de um poder tirânico onde, como se costuma dizer, “ninguém pode confiar em ninguém”: neste caso se emudece a comunicação simples e espontânea e mesmo que se receba alguma informação não se sabe se é possível ou não crer nela.

Quem pensa nisto repara subitamente quão grande comunhão, solidariedade humana e mútua afirmação vem no bojo do corriqueiro fato de que os homens falem entre si com simplicidade, que um ouça ao outro e, como atitude básica – por assim dizer, até que se prove o contrário – confie nele, creia nele.

Amor pode até ser uma palavra um tanto grandiosa demais para designar essa mútua abertura de vontades, mas imprópria não é.

Através dessa confiada afirmação do interlocutor efetua-se uma comunhão – não há, aliás, outra forma de a comunhão se realizar – uma comunhão de posse. O que ouve, o que crê, participa do conhecimento que tem o que sabe. E quando, na tradição teológica, se diz que a fé nos liga e nos traz o contato com o saber de Deus, com isso se indica de modo muito preciso uma chance; uma chance que se abre a cada um que crê naquele que é digno de fé: a chance de ver (o que com os próprios olhos jamais poderia), com o olhar de Quem – sem intermediários – vê e sabe.

E com Quem o que crê se identifica pelo amor.

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Enio Starosky

Teólogo e educador | eniostarosky@gmail.com

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