Advento e Natal na companhia das Epístolas


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03/12/2021 #Editora Concórdia #Artigos #Estudos #Exclusivo Assinantes

Ter um coração isento de culpa diante de Deus: isto é o que mais importa. Esta é nossa constante necessidade, também no tempo de Advento

Advento e Natal na companhia das Epístolas

            Advento é um tempo especial na vida da igreja, com características próprias, que nem sempre são respeitadas. O termo, que significa “vinda”, descreve um período de quatro domingos antes do Natal, mas não chega a ser propriamente uma preparação para o Natal. Na prática, é bem verdade, acaba sendo mais ou menos isso. No entanto, Advento é Advento e Natal é Natal!

Por apontar para a “vinda”, o Advento nos convida a voltarmos a nossa atenção para aquela parte de nossa confissão de fé em Cristo que está no tempo futuro: “virá novamente em glória a julgar os vivos e os mortos” (Credo Niceno). Assim, convido você a refletir comigo a partir das leituras de epístola previstas para os quatro domingos de Advento, no ano C da Série Trienal (o ano de Lucas). Os textos são 1Tessalonicenses 3.9-13, Filipenses 1.2-11, Filipenses 4.4-7, Hebreus 10.5-10. Não temos leitura seriada de uma só epístola. Os textos foram escolhidos a dedo por estarem relacionados com o tema do Advento.

 

         Coração isento de culpa na vinda de Jesus (1Ts 3.9-13)

            O apóstolo Paulo escreveu a primeira carta à igreja da cidade de Tessalônica quando, devido à perseguição, teve de sair às pressas da cidade, dirigindo-se a Atenas. De lá, enviou o seu colaborador, Timóteo, para “perguntar a respeito da fé que vocês têm, temendo que vocês fossem provados pelo tentador e o nosso trabalho se tornasse inútil” (1Ts 3.5). Com o regresso de Timóteo, que trazia boas notícias, Paulo escreveu essa carta.

            No trecho escolhido como leitura para o Primeiro Domingo no Advento (1Ts 3.9-13), o apóstolo se mostra alegre e agradecido a Deus pelos cristãos tessalonicenses. Ao mesmo tempo, ele ora, pedindo que Deus prepare o caminho para que ele possa voltar a Tessalônica. Dito isso, Paulo acrescenta a parte que se relaciona diretamente com o tema de Advento: “E o Senhor faça com que cresça e aumente o amor de uns para com os outros e para com todos, como também o nosso amor por vocês, a fim de que o coração de vocês seja fortalecido em santidade, isento de culpa, na presença de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus, com todos os seus santos” (1Ts 3.12-13).

            Paulo faz referência à “vinda de nosso Senhor Jesus”. Parece que não havia necessidade de maiores explicações a respeito desta “vinda” do Senhor (em grego, parousía, “presença”), porque os cristãos de Tessalônica sabiam (assim como nós hoje sabemos) exatamente do que se tratava. Mas será que não deveria ser a “volta” do Senhor Jesus ou, então, a “segunda vinda” de Cristo, como os pregadores gostam de dizer? Não. O Novo Testamento sempre se refere à “vinda” de Jesus. E ele virá “com todos os seus santos” (v.13), numa provável referência aos anjos (2Ts 1.7; Mt 25.31).

Nessa oração que faz pelo povo de Deus, o apóstolo tem dois pedidos: “que cresça e aumente o amor de uns para com os outros” (v.12) e que “o coração de vocês seja fortalecido em santidade, isento de culpa, na presença de nosso Deus e Pai”. O coração é a sede da vida interior, envolvendo a mente, a vontade e as emoções. O coração é a sede da fé (Gl 4.6). Paulo não explica, neste texto, como o coração pode ser fortalecido em santidade e ficar isento de culpa, mas isso se dá pela proclamação do perdão, no evangelho. Ter um coração isento de culpa diante de Deus: isto é o que mais importa. Esta é nossa constante necessidade, também no tempo de Advento.

 

         Sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo (Fp 1.2-11)

            Paulo escreveu aos Filipenses quando estava preso (Fp 1.13), mas a carta é marcada pelo tom da esperança e da alegria. Trata-se, na verdade, de uma carta em que um missionário agradece a ajuda recebida de uma comunidade cristã parceira na evangelização (Fp 1.5; 4.10-20).

No trecho que lemos no Segundo Domingo no Advento, aparecem duas referências a um dia: “o Dia de Cristo Jesus” (v.6) e “o Dia de Cristo” (v.10). Sabemos de que Dia se trata. Mas em que sentido será um “dia”? Não como um período de vinte e quatro horas, mas como “um dia reservado para um propósito todo especial, a saber, o dia do julgamento final deste mundo”. (Quanto tempo levará? Não se diz.) Bastava dizer “o Dia de Cristo” para que os cristãos daquele tempo entendessem do que se tratava. Quem tem familiaridade com o Antigo Testamento percebe que “o Dia de Cristo” toma o lugar do “dia do SENHOR”. O Dia de Cristo é o dia do SENHOR. Esta equiparação é uma implícita confissão da divindade de Cristo.

Que ensino específico nos é dado em relação a esse Dia? Primeiramente, Paulo diz estar certo de que “aquele que começou boa obra em vocês há de completá-la até o Dia de Cristo Jesus” (v.6). Alguém começou uma boa obra em nós, e esse alguém é Deus. No versículo anterior, Paulo fez referência a algo que poderia ser descrito como uma boa obra dos filipenses, que era participar da proclamação do evangelho. Agora ele surpreende, falando sobre uma “boa obra” de Deus. Essa boa obra deve ser tudo aquilo que Deus opera em nós, especialmente a fé, a esperança e o amor. Paulo está certo de que Deus vai continuar essa obra até que ela esteja completa no Dia de Cristo. Sim, ela só se completará naquele Dia. Deus não cessará de fazer essa sua obra. E nós podemos pedir, no Advento: “Ó Deus, continua a tua boa obra em nós, até que esteja completa, naquele Dia”.

No final do trecho lido no Segundo Domingo no Advento, Paulo ora. Ele tem basicamente quatro pedidos: que o amor dos cristãos aumente mais e mais; que os cristãos tenham sabedoria para aprovar as coisas excelentes; que eles sejam sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo; que a vida deles seja cheia do fruto de justiça que vem por meio de Jesus Cristo, para glória e louvor de Deus. Note mais uma vez a importância de estar sem culpa diante do Juiz. Do mesmo modo, chama a atenção essa repetida referência ao amor mútuo. Poderíamos dizer que, enquanto aguardamos aquele Dia, isentos de culpa, ficamos ocupados com o amor ao próximo. Esse amor é a fé que se expressa em ação, e esse será o critério do julgamento. Mas, no final, tudo será para a “glória e o louvor de Deus” (v.11).

 

           Perto está o Senhor! (Fp 4.4-7)

            Um segundo trecho da carta aos Filipenses (Fp 4.4-7) é a leitura de epístola para o Terceiro Domingo no Advento. Um texto breve, com várias afirmações. São cinco frases independentes, que aparecem em sequência. Uma delas é “Perto está o Senhor” (v.5), e certamente é por causa desta frase que o texto é lido nesse domingo. Em que sentido o Senhor está perto? (Note que não se trata propriamente de dizer que “Já vem perto o Natal”, como cantamos.) Trata-se de uma proximidade temporal, e não espacial. Em outras palavras, o texto não está dizendo que o Senhor está sempre perto de nós, mas que “o Senhor virá logo” (NTLH).

Se tomarmos a proximidade da vinda do Senhor como o tema dominante desse trecho, poderemos dizer que três coisas resultam dessa esperança: alegria (v.4); moderação ou bondade (v.5); e despreocupação, diante do privilégio de podermos orar (v.6). Que belo projeto de vida para o Advento, que se estende ao longo de toda a nossa vida! E, note que, ao final, aparece uma promessa: “A paz de Deus, que excede todo entendimento (e não apenas o “humano entendimento”!), guardará o coração e a mente de vocês em Cristo Jesus”. Em Provérbios 4.23, o sábio nos lembra: “De tudo o que se deve guardar, guarde bem o seu coração, porque dele procedem as fontes da vida”. Ouvir a promessa de que a paz de Deus guardará o nosso coração é grande consolo!

 

           Um corpo para o Messias fazer a vontade de Deus (Hb 10.5-10)

Normalmente, o Quarto (e último) Domingo no Advento abre a semana do Natal. Portanto, nada mais justo que a nossa atenção já esteja voltada para o nascimento de Cristo. Nesse Domingo ocorre o que se poderia chamar de “o primeiro grito de Natal!” É claro que, em alguns lugares (especialmente fora do ambiente de igreja), até já houve “festa de Natal”. No entanto, se levarmos em conta o ano litúrgico e as leituras no culto, o tema do Natal aparece só agora. Depois, teremos doze dias de Natal!

Neste ano C (2021-2022), a epístola para o Quarto Domingo no Advento é Hebreus 10.5-10. (Cabe lembrar que os primeiros leitores de Hebreus não são chamados de “hebreus”. São, na verdade, cristãos, provavelmente de origem judaica.) Lá, no capítulo 10, o autor desse tratado teológico (o autor não se identifica, e o texto é mais um tratado do que uma carta) traz uma fala de Cristo, algo que ele disse ao entrar no mundo. Note que este tema da vinda de Cristo ao mundo é o tema da encarnação, o tema do Natal. Cristo falou quando veio ao mundo. Mas onde Cristo falou? O autor ouve a voz de Cristo no Salmo 40, versículos 6 a 8. Ah, então Cristo fala nos salmos? Sim, o grande salmista é sempre Cristo (e não tanto Davi). Cristo ora os salmos, às vezes como Cabeça, às vezes como Corpo (a igreja).

Ao entrar no mundo, dirigindo-se ao Pai, Cristo diz: “Sacrifício e oferta não quiseste, mas preparaste um corpo para mim” (v.5). Sim, era necessário que o Cristo tivesse um corpo. Mas ele diz mais: “Estou aqui para fazer, ó Deus, a tua vontade” (v.7). Qual a importância disso? O autor da Carta aos Hebreus explica. Ele argumenta assim: Se o Cristo diz que Deus não queria sacrifícios e ofertas pelo pecado e ao mesmo tempo deu ao Cristo um corpo para que ele fizesse a vontade de Deus, isso só pode significar que Deus “acabou com todos os antigos sacrifícios e pôs no lugar deles o sacrifício de Cristo” (v.9, NTLH). Cristo veio ao mundo para fazer um sacrifício. E o autor de Hebreus conclui, dizendo que “nessa vontade (isto é, pela vontade de Deus que Cristo cumpriu) é que nós temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas” (v.10). Nossa santificação (ou salvação) se dá por meio da oferta do corpo de Cristo. Essa oferta, ele fez no altar da cruz. Lá ele fez seu sacrifício “uma vez por todas”. Foi o sacrifício final, definitivo. Depois daquele sacrifício, não se fala mais sobre sacrifícios (a não ser o sacrifício de Jesus).

Diante do exposto, podemos perguntar: Por que o Natal? Por que Cristo veio ao mundo? Para fazer a vontade do Pai. Para fazer aquele sacrifício definitivo, final. Cristo nasceu para morrer na Sexta-feira Santa. A sombra da cruz se projeta sobre a manjedoura.


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Vilson Scholz

Professor de Teologia no Seminário Concórdia vscholz@uol.com.br

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