Entendi que ali era o meu lugar


Ler em formato flip
01/07/2022 #Exclusivo Assinantes #Artigos #Editora Concórdia

Nícolas Batista mudou de profissão em 2020

Entendi que ali era o meu lugar

O que o inspirou a buscar essa profissão?

Acho que a maioria das pessoas, na infância, já pensou em ser bombeiro, policial e, quem sabe, até astronauta. Mas a realidade é que eu nunca busquei especificamente esta profissão. Sou formado em Administração e, até início de 2020, atuei nesta área.

Porém nunca me senti bem com o que fazia, porque para mim faltava um propósito, eu gostava de trabalhar com pessoas e para as pessoas. Já trabalhei com serviços em que era mais isolado e precisava daquele foco em frente a um computador para lançar documentos, gerenciar planilhas, enfim... E até mesmo com o público, na área de vendas, mas, mesmo assim, não era o que eu queria.

Todo trabalho tem sua importância, é claro, mas dentro de nós há um propósito maior. E foi em 2017 que iniciei a jornada para buscar esse propósito. Decidi que queria atuar na área de segurança pública, e era incrível que até mesmo os estudos fluíam de uma forma que me inspirava mais. Mas Deus sabia, melhor do que eu, qual era meu propósito, e me colocou no caminho do Corpo de Bombeiros de Santa Catarina. E após passar por uma série de provas durante anos, vencendo desafios e evoluindo gradativamente, foi no estágio, na primeira ocorrência atendida, que eu entendi que ali era o meu lugar.

 

Qual a principal função e missão de ser bombeiro?

A função do bombeiro militar hoje está muito relacionada a seu lema, que vem de uma frase do latim que diz Alienam vitam et bona salvare. Significa “Vidas alheias e riquezas a salvar”, e estava escrita no espadim de Dom Pedro II, patrono do corpo de bombeiros do Brasil. Nesse sentido, o Corpo de Bombeiros Militar atua desde a prevenção, a fim de evitar desastres relacionados à vida ou patrimônios, até nas ocorrências de urgência como atendimento pré-hospitalar, incêndios, salvamentos na água, na terra ou em altura. Além disso, existe toda uma parte de inteligência antes, durante e após grandes desastres, como enxurradas, a fim de alertar as pessoas, diminuir os riscos e ter uma força-tarefa de prontidão para atender as pessoas que precisam de ajuda.

 

Quais as principais habilidades/capacidades que se deve ter para ser bombeiro?

Vou destacar algumas que acho extremamente importantes para ser um excelente bombeiro militar na corporação: controle emocional elevado, ausência de impulsividade, autoconfiança adequada, disposição para trabalho elevado, disciplina, coragem e objetividade elevadas.

Cabe destacar também, apesar de não constar no edital, mas cobrado dentro do curso de formação, o espírito de corpo. Muito comentado no meio militar, o espírito de corpo nada mais é do que pensar no coletivo, no seu colega, e esquecer qualquer diferença que tenha entre você e ele, em prol de uma outra vida que precisa de ajuda. Um bombeiro não se faz sozinho, é por isso que se chama Corpo de Bombeiros.

Além disso, é importante destacar o preparo físico, que nunca deve ser deixado de lado, até o fim da carreira. É preciso sempre estar bem fisicamente para carregar equipamentos e ter vigor físico para combater incêndios que muitas vezes duram mais que oito horas.

 

Quais suas maiores experiências/lembranças desta profissão? Tem alguma história pessoal que pode compartilhar?

Uma ocorrência que me marcou muito foi um acidente de trânsito na BR 282 em Pinhalzinho – inclusive tenho lembrança que esta foi uma das primeiras ocorrências que atendi no oeste de Santa Catarina. Tratava-se de uma colisão frontal entre carro de passeio e caminhão. Naquele dia o alarme não tocou; alguém ligou diretamente no quartel em vez de ligar na central de emergência 193. Nos deslocamos com o trem de socorro (nome técnico usado quando toda a guarnição se desloca com o caminhão dos bombeiros e a ambulância).

Quando chegamos na cena, constatamos duas vítimas no carro que já haviam falecido, uma mãe e uma filha adulta. O motorista do caminhão nada sofreu. Fizemos a interdição completa da rodovia em ambos os sentidos e iniciamos os procedimentos para desencarcerar as duas vítimas fatais de dentro do veículo. Após a remoção, cobrimos elas para aguardar a chegada do IGP (Instituto Geral de Perícias). E foi nesse momento que chegaram os familiares das vítimas. Naquele momento vi o esposo da filha desesperado, aos prantos, ultrapassando a barreira da polícia. Ele chegou ao lado do corpo e desabou com os joelhos no chão. Eu estava fazendo a limpeza da pista, e ver aquela cena me chocou. Parei o que estava fazendo e fui de alguma forma tentar consolar aquele homem. Eu cheguei ao lado dele e o abracei, então ele me disse, “Eu tenho uma filha com ela, como vou cuidar dela sozinho?”, e por alguns segundos eu fiquei abraçado nele, sem palavras, sentido aquela angústia dele. Em seguida, a única coisa que eu pude dizer foi, “Entrega teu caminho ao Senhor! Seja forte!”

Até hoje eu penso que não foram as melhores palavras para dizer àquele pai e marido, pois só ele sabia o que estava sentindo. Mas aquelas palavras foram meu desejo por ele. Pois apesar de tudo, ele ainda tinha uma filha que o estava esperando em casa, e ia precisar dele agora. Saí da ocorrência com os olhos marejados, e só chorei quando cheguei em casa no outro dia, como se tivesse retirado aquele fardo das costas. Ali eu entendi a parte mais difícil de ser bombeiro. Não é carregar equipamento pesado, se deslocar rápido pra ocorrência, ou acordar de madrugada às pressas para atender alguém. O difícil é olhar o sofrimento dos que ficam. Desde então, nessas horas tento trazer, de alguma forma, o consolo de Deus para as pessoas que ficam. Acredito que, mesmo que a gente não encontre as melhores palavras, qualquer citação da Bíblia, junto de um abraço, já traz uma reflexão e uma esperança para aqueles que ficam.

 

Busca, resgate e salvamento. Quais os principais desafios e alegrias desta profissão? O que o motiva diariamente?

O bombeiro sempre está em constante treinamento. É preciso disposição e gostar muito do que se faz. E, sinceramente, é difícil não gostar de alguma coisa. Pois são tantas áreas e tantas oportunidades dentro da profissão de bombeiro que tem para todos os gostos. Para quem se dá bem na água, tem cursos de mergulho e de guarda-vidas. Para quem gosta de buscas, tem cursos de busca terrestre e em áreas deslizadas. Para quem gosta de atuar nos incêndios, tem curso de incêndio florestal e em edificações verticalizadas. O desafio? É se empenhar e dar o seu melhor em qualquer uma dessas áreas e se aperfeiçoar cada vez mais. A alegria? Conseguir aplicar tudo que aprendeu para salvar alguém, isso não tem preço.

Minha motivação diária está exatamente no que eu faço. Não existe motivação maior do que acordar todo dia e pensar “alguém precisa de mim, preciso ir”. Talvez, e muitas vezes já foi assim, eu seja a única pessoa, para aquela vítima, que virá correndo para socorrê-la. Eu sempre penso no meu trabalho no sentido de que hoje pode haver uma ocorrência muito séria, e isso traz ainda mais motivação para treinar e me aperfeiçoar para entregar o meu melhor serviço nessa situação. Eu nunca sei o que está me esperando lá fora. Eu nunca sei quando e para qual tipo de ocorrência o alarme vai tocar. E mesmo que isso me traga um pouco de medo, me dá uma alegria de poder viver novos desafios a cada dia.

           

 

Nessa profissão, nem sempre tudo sai como esperado, e algumas perdas, inclusive de vidas, também ocorrem. Como lidar com o sofrimento?

Essa resiliência emocional que temos que ter na profissão, eu digo que se adquire com o tempo, com cada situação vivida. Tudo que é novo traz forte impacto no momento, mas, depois, nossa mente se adapta. Não nos tornamos frios, não é isso. Mas nos tornamos aquela pessoa que numa situação angustiante, age pela razão e que faz o que tem que ser feito. Pois quando se trata de vidas, não podemos parar e pensar nas coisas ruins e lamentar. Temos que aplicar o que aprendemos e dar nosso melhor por aquela pessoa.

No final de uma ocorrência de parada cardíaca por exemplo, sempre absorvemos aquela angústia e estresse emocional de, na maioria das vezes, não conseguir revertê-la. Nos meus primeiros dias de serviço, algumas ocorrências me pesavam. Elas não me abalavam naquele momento do atendimento, mas me faziam sentir mal quando eu chegava em casa. Comecei a trabalhar isso conversando sobre as ocorrências com minha esposa. A noite sempre lemos o Cinco Minutos com Jesus, e isso também ajudava na meditação. Com o tempo fui evoluindo, e isso não se tornou mais um problema.

 

Ajudar (amar) o próximo é um dos ensinamentos de Jesus. Na sua opinião, a profissão de bombeiro também é uma oportunidade para exercer isso? Existe relação entre a profissão e o “ser cristão”?

Isso é tão forte na profissão, pois muitas vezes chegamos na ocorrência e ela se trata de alguma agressão ou violência envolvendo a polícia. Nessas horas, não podemos parar para perguntar “Quem é o agressor?” e fazer pré-julgamentos. Simplesmente perguntamos “Quem precisa de atendimento?” e atendemos. Apesar de qualquer fato ocorrido anteriormente relacionado a pessoa que está sendo atendida, ela merece ser socorrida tanto quanto qualquer outro.

Não cabe a nós julgar ou decidir se ela vai ser atendida, assim como não cabe a nós, cristãos, dizer quem vai ou não ser condenado. Apesar de sermos todos pecadores, o pecado de uma pessoa com ficha na polícia, que está sendo atendida por nós, não é maior ou menor que o meu pecado. Nós, cristãos, temos muita dificuldade de entender isso, exatamente por sermos pecadores. E na nossa profissão, como bombeiros, temos a oportunidade de trabalhar isso justamente nos atendimentos, prestando o mesmo suporte, independente de crime, cor, raça, sexo ou qualquer tipo de discriminação. Muitas vezes inclusive, somos difamados em ocorrências pela própria vítima, e é aí que deve entrar a abnegação dos nossos interesses e do nosso pecado, refletindo em dois pontos que acho importantes da Bíblia: “Ame os outros como você ama a você mesmo” (Marcos 12.31), e “Pai, perdoa esta gente! Eles não sabem o que estão fazendo” (Lucas 23.34).

 

* Para finalizar, o que gostaria de acrescentar?

Gostaria de agradecer a oportunidade de falar um pouquinho dessa profissão gratificante; me faz relembrar o porquê estou aqui e refletir em como posso melhorar como cristão dentro da corporação. E também dizer a todos que estão fazendo a leitura, que você não precisa entrar no Corpo de Bombeiros para salvar alguém. Seja um bombeiro na sua vida e na vida do seu próximo, salve-o de pensamentos ruins, de atitudes ruins e sinta a alegria de poder ajudar alguém.

Nícolas William Batista

29 anos

Soldado Bombeiro Militar em Saudades, SC

Leia a matéria completa que celebra o Dia do Bombeiro e outros depoimentos clicando aqui

Assine o mensageiro luterano e fique por dentro dessa e outras notícias

Já é assinante?

Não sou assinante

Natacha Teske

Jornalista, São José, SC mensageiro@mensageiroluterano.com.br

Exclusivo Assinantes Leia mais


Assine o Mensageiro Luterano e
tenha acesso online ou receba a
nossa revista impressa

Ver planos