Salomé: ambições, silêncio e sangue


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18/04/2023 #Artigos #Exclusivo Assinantes #Reflexão

Quem se lembrará daqui a mil anos de ideias influentes agora? Opositores sanguinários tentam abafar palavras renovadoras, as palavras vivas de Cristo matam a morte, conduzem homens da ruína à vida ...

Salomé: ambições, silêncio e sangue

Quanto vale uma cabeça? Pintada ou esculpida, ela pode valer milhões. Lembro A decapitação de João Batista, quadro pintado por Caravaggio em 1608. O mártir, já ferido, estendido no chão, sob o braço do carrasco, encerra a missão de rosto sereno. Piedade, inclemência e tormento estampam-se na expressão dos circundantes.

No cumprimento do dever, a voz do profeta tinha abalado cabeças coroadas; uma delas, Herodias, a mulher de Herodes Antipas. A rainha alimentava ambição sem limites; em busca de poder, migrou do leito de Filipe aos braços de Antipas, ambos filhos de Herodes, o Grande. Mais lhe valia o brilho de uma corte periférica do que vida obscura em Roma, onde residiam ela, seu marido e a filha do casal. Unida a Antipas na Galileia, Herodias levou o tetrarca a prender João Batista, crítico eloquente de atos reprováveis praticados por nobres, obstáculo às aspirações da rainha. Tudo indica que Herodias não parava de implorar a morte do profeta detido. Os evangelistas não registraram o nome da filha, fruto do primeiro matrimônio. Documentos da época relatam que ela se chamava Salomé. Como Salomé ela é conhecida na arte ocidental. Em Roma Salomé aperfeiçoou a arte de dançar, tornou-se bailarina com habilidades que a distinguiam entre as melhores, abrilhantou os festejos de aniversário de seu padrasto. O espetáculo deslumbrou a nobreza reunida no palácio real. Nos olhos embriagados de Antipas confundem-se dança, prazer e poder. O assecla de Roma, de ideias embaralhadas pelo vinho, oferece encantado à enteada metade de seu reino. Era a ocasião que Herodias aguardava. O que interessavam os bens reduzidos de um chefete nas periferias do Império aos interesses de uma mulher ambiciosa? Cleópatra, rainha do Egito, unida a César, tinha chegado muito perto do trono imperial. A metade das riquezas de Antipas não significava nada aos desejos ilimitados de Herodias. A ambiciosa deve ter inflamado os sonhos da filha. O que valiam espetáculos na obscura Galileia se os encantos da bailarina poderiam deslumbrar seletos espectadores em Roma?

Conflitos interiores afligiam Antipas. Discursos proferidos no deserto ecoavam em aldeias e cidades. Antipas prendeu João Batista por razões políticas e familiares. Agiu indeciso entre o aplauso popular e sentimentos assassinos de sua esposa. É procedente supor que Antipas tenha interrogado o prisioneiro mais de uma vez. A voz do profeta em audiências particulares o deixa aflito: justiça, correção, ordem, fé – valores do reino que não é deste mundo. Como entrar no reino proclamado? Com o arrependimento, metánoia, mudança radical de mentalidade. A mentalidade regenerada saberia enfrentar dor, dúvidas, morte. Arrependidos desvencilham-se de indecisões, de sujeição a normas, enveredam em novas possibilidades de ser. A terra prende, o céu sem limites é oferecido a livres. O batismo, praticado por João, rompe barreiras. O reino dos céus vem sem restrições aos que esperam redenção, aos que vivem na esperança. Violência manchava de sangue a linhagem dos Herodes.

Dois anos depois do martírio de João, Antipas encontra-se em Jerusalém, tinha vindo para celebrar, com outros, a Páscoa judaica, festa que recordava a libertação de antepassados do jugo egípcio. Inesperadamente, Pilatos, governador romano, envia-lhe um prisioneiro acusado de atividades contra o governo de Roma. Autoridades eclesiásticas de Jerusalém pediam a morte do Profeta. É a primeira vez que Herodes vê Jesus, o Messias anunciado por João. O tetrarca tentou degradar o processo a brincadeira, pediu que o prisioneiro fizesse um milagre. O silêncio do Redentor frustrou as pretensões de Antipas. Atormentado por conflitos antigos, Herodes preferiu abster-se de julgar. Devolveu Jesus a Pilatos sem se pronunciar, gesto recompensado com a amizade do governador romano. O silêncio de Jesus não abalou a força de discursos proferidos ao longo de três anos. Jesus garantiu a ouvintes seus: minhas palavras não passarão. A morte silencia as palavras de eminentes pensadores. Quem se lembrará daqui a mil anos de ideias influentes agora? Opositores sanguinários tentam abafar palavras renovadoras, as palavras vivas de Cristo matam a morte, conduzem homens da ruína à vida.

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Donaldo Schüler

Professor emérito e escritor donaldoschuler@yahoo.com

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