Por que a lei da exclusão não foi respeitada, e Rute, uma moabita, pôde casar-se com Boaz, um israelita? Por que Rute faz parte da linhagem de Cristo?
A história de Rute chama a atenção por
sua devoção a Deus e lealdade para com sua sogra. Rute casou-se duas vezes. Do
primeiro casamento, ficou viúva e sem filhos. O seu segundo casamento foi com
Boaz, e tiveram Obede, que foi o avô do rei Davi.
Há um detalhe intrigante ligado aos
casamentos de Rute, pois havia uma lei nos livros de Moisés que dizia que
moabitas não deveriam ser aceitos no meio dos israelitas (Dt 23.3-5; Ne
13.1-3). Vamos chamar esse preceito de “lei da exclusão”.
Rute era moabita, e os seus dois
casamentos foram com israelitas. Em vista disso, fica a pergunta: Por que a lei
da exclusão não foi respeitada, e Rute, uma moabita, pôde casar-se com Boaz, um
israelita? Por que Rute faz parte da linhagem de Cristo? Vamos nos debruçar
sobre estas questões e ver o que a Bíblia diz sobre este assunto.
O POVO
MOABITA
Os moabitas são descendentes de Ló, o
sobrinho de Abraão (Gn 12.5). A linhagem do povo moabita é fruto de incesto de
uma filha de Ló com o seu pai (Gn 19.20-38). Moabitas e israelitas são
parentes.
Quando os israelitas saíram do Egito,
rumo a Canaã, passaram pela terra dos moabitas e não tiveram nenhum amparo. Os
moabitas desejavam o mal dos israelitas (Nm 22-24).
A atitude dos moabitas foi reprovada e
punida com a lei que os excluía do meio do povo de Deus até a décima geração e
que os privava de ações de favorecimento (Dt 23.3-6; Ne 13.1-3). A lei da
exclusão, como escrita em Deuteronômio e em Neemias, não deixa dúvidas de que a
união desses dois povos em matrimônio era uma transgressão.
ISRAELITAS
EM MOABE
Uma família israelita saiu da cidade de
Belém, que fica em Israel, com destino a Moabe, do outro lado do rio Jordão, para
fugir de uma grande fome que aconteceu na região em que habitavam. Essa família
era formada por Elimeleque, Noemi e seus dois filhos. Os filhos desse casal,
Malom e Quiliom, casaram-se com moças moabitas chamadas, respectivamente, Rute
e Orfa. Com base na lei de Moisés (Dt 23.3-6; Ne 13.1-3), os filhos de Elimeleque
e Noemi não deveriam ter se casado com moças moabitas.
UMA MOABITA
EM ISRAEL
Em certo momento, ainda em Moabe, os
homens da família de Noemi morreram, restando somente Noemi e suas noras, Rute
e Orfa. Noemi resolveu voltar para sua terra e foi acompanhada por Rute, que
demostrou devoção a Deus – o Deus de Israel – e profunda lealdade à sogra.
Já de volta a Israel, em Belém, as
coisas se encaminharam de modo que Rute acabou se casando com Boaz. Por meio de
uma lei conhecida como lei do levirato (Dt 25.5-10), Rute e Boaz suscitaram um
descendente legítimo para Malom, esposo falecido de Rute.
LEI DA
EXCLUSÃO X LEI DO LEVIRATO
Tendo conhecimento do que dizia a lei
da exclusão e a lei do levirato, podemos pensar que a união de Rute e Boaz
colocou duas leis do Antigo Testamento em confronto.
A lei da exclusão dizia que moabitas e
israelitas não deveriam se unir (Dt 23.3-6; Ed 9; Ne 10.30; 13.1-3). Para a lei
da exclusão, o casamento de Rute e Boaz era uma transgressão.
A lei do levirato ou lei do cunhado (levir
em latim quer dizer “cunhado”) tinha como objetivo proteger o patrimônio que
cada família israelita recebera de Deus, evitando que este fosse para outro
grupo familiar. Desse modo, a lei do levirato dizia que, falecendo o marido sem
ter filho homem, seu parente mais próximo deveria casar-secom a viúva e o primeiro filho homem desse casamento
seria reconhecido como filho do falecido e herdeiro legítimo dele (Dt 25.5-10;
Rute 3.12-13; 4.5-12). Pela lei do levirato, o casamento de Rute e Boaz era
legítimo e suscitaria descendentes e herdeiros a Malom, o primeiro marido de
Rute, israelita de nascimento, agora falecido.
A lei da exclusão não é sequer lembrada
no livro de Rute, seja direta ou indiretamente. Já a lei do levirato é citada,
explicada e confirmada pelos anciãos da cidade (Rt 4). Ao que parece, a lei da
exclusão não se aplicou naquele contexto do casamento de Boaz e de Rute.
O RESPEITO
A LEI DA EXCLUSÃO
A lei da exclusão foi apresentada por
Moisés, possivelmente, entre 1.250 e 1.150 a.C. A história de Rute deve ter
acontecido entre 1.150 e 1.050 a.C. Esdras e Neemias, os profetas que
reafirmaram a lei da exclusão, provavelmente viveram entre 550 a 450 a. C. Ou
seja, uns 600 anos depois do casamento de Rute e Boaz, Esdras e Neemias
disseram que a lei da exclusão ainda estava valendo. Com base nesta informação,
podemos pensar que, realmente, Rute e Boaz foram um casal fora da lei.
De certo modo, a lei da exclusão era
bastante ampla, pois os israelitas eram proibidos de se relacionar com todos os
estrangeiros à sua volta. Quando Deus tirou os israelitas do Egito, os advertiu
sobre o perigo do relacionamento com os estrangeiros e os proibiu de se unirem
matrimonialmente. O objetivo de Deus com este preceito era assegurar que o povo
de Israel não se desviasse do caminho certo. Os estrangeiros poderiam levar o
povo de Israel a deixar de adorar o Deus verdadeiro e, consequentemente, a sofrer
a devida punição, que culminaria na destruição (Dt 7).
Na época de Esdras e Neemias, período
em que o povo de Deus estava voltando do cativeiro babilônico, a união dos
israelitas com os estrangeiros estava sendo bastante prejudicial. A devoção a
Deus e aos seus ensinamentos estavam sendo deixados de lado devido a esses
casamentos.
Esdras foi informado que sacerdotes e
levitas haviam casado com mulheres pagãs (Ed 9.1-15). Neemias constatou que as
crianças, fruto de casamentos com mulheres estrangeiras, não estavam mais
sabendo a língua dos judeus, só falavam as línguas de suas mães estrangeiras
(Nm 13.23-24). Esdras e Neemias tomaram atitudes severas. Casamentos foram
desfeitos e violência física praticada (Ed 10; Ne 13.23-30).
OUTRO MODO
DE VER OS ESTRANGEIROS
A lei da exclusão é muito dura. Porém
há outro modo de lidar com os estrangeiros. Nem sempre os estrangeiros deveriam
ser expulsos. Havia exceções. Há várias passagens bíblicas que incentivam o
acolhimento ao estrangeiro, levando em conta que o povo de Israel foi
estrangeiro no Egito (Dt 10.17-19; Êx 22.21; Lv 19.33). O que está no centro
desse ensinamento é a empatia, o imaginar-se no lugar do outro.
Outra situação em que a lei da exclusão
não deveria ser aplicada está relacionada ao modo de agir do estrangeiro.
Estando no meio do povo de Israel, o estrangeiro era bem-vindo quando vivia
como um judeu, aceitando, respeitando e praticando os preceitos divinos (Nm
15.15; Lv 24.22; Ez 44.9). Neste caso, israelitas e estrangeiros eram devotos do
Deus verdadeiro e, consequentemente, aceitos no povo de Deus.
Empatia e devoção eram as bases para a
aceitação dos estrangeiros no meio do povo de Israel.
UMA MOABITA
DIFERENTE
Olhando para o modo de agir de Rute, parece
que ela era devota do Deus verdadeiro mesmo antes de sua profissão de fé a
Noemi em Rt 1.16-17. Tudo indica que a consagração de Rute ao Deus verdadeiro
aconteceu pelo convívio e testemunho da família de Noemi. Podemos afirmar que
Rute tinha o Deus do povo de Israel como o seu Deus desde o seu primeiro
casamento, com Malom.
A lei da exclusão entrou em vigor
depois da atitude deplorável e hostil do povo de Moabe para com o povo de
Israel (Dt 23.3-6). A atitude de Rute para com Noemi difere totalmente da
atitude do seu povo, os moabitas. Na época em que o povo de Israel saiu do
Egito, a caminho para a Terra Prometida, e passou por Moabe, os israelitas não
foram acolhidos, mas rechaçados pelos moabitas. Rute agiu diferente. Rute
acolheu a fé da família israelita que conheceu em Moabe e amparou sua sogra,
amando o Deus verdadeiro e o povo de Deus.
Rute não deve ser punida com base em um
erro que ela não cometeu. Rute possivelmente viveu uns 100 anos depois do
episódio do êxodo do Egito e dessa desavença entre israelitas e moabitas.
A Bíblia ensina que os filhos não pagam
pelos erros dos pais (Dt 24.16; Jr 31.29-30 e Ez 18.20). Há uma
responsabilidade individual. Cada indivíduo responde por seus atos – “A pessoa
boa será recompensada por fazer o bem, e a pessoa má sofrerá pelo mal que
praticar” (Ez 18.20b).
Esdras e Neemias recorreram à lei da
exclusão mais ou menos 600 anos depois do casamento de Rute e Boaz, em função
da influência negativa que os estrangeiros estavam exercendo sobre a fé dos
israelitas que estavam voltando do cativeiro babilônico.
Rute não era uma ameaça à fé dos judeus
e não seria uma má influência para com os seus descendentes. Isso pode ser
confirmado tendo em vista a atitude dos anciãos que aprovaram o casamento de
Rute e Boaz e que confirmaram a aplicação da lei do levirato, que preservaria a
herança e a linhagem da família de Noemi, uma família israelita.
A aprovação dos anciãos ao casamento de Rute
e Boaz revelou que não há nenhuma transgressão em um casamento entre moabitas e
israelitas quando os cônjuges adoram ao Deus de Israel. A lei da exclusão do
povo moabita do meio do povo de Israel não se aplica a Rute e a Boaz. Assim,
Rute e Boaz estavam fora dessa lei, a lei da exclusão.
O CASAL
FORA DA LEI
Voltemos à primeira das duas perguntas
que fizemos no início desse artigo: por que a lei da exclusão não foi
respeitada, e Rute, uma moabita, pôde casar-se com Boaz, um israelita?
São muitos os motivos da não aplicação
da lei da exclusão ao casal Rute e Boaz. Há aspectos diretos e indiretos que
precisam ser vistos para termos uma resposta plausível.
Vejamos alguns aspectos indiretos:
1.A
omissão da lei da exclusão no livro de Rute é um indício de que essa lei não se
aplicava ao casal Rute e Boaz;
2.A
atitude de Rute para com sua sogra mostra que ela agiu diferente dos moabitas
da época do êxodo israelita. Rute esteve ao lado de sua sogra, amparando e
trabalhando para o sustento de sua sogra e dela. Rute trazia comida para casa
(Rute 2.18);
3.A
punição que o povo moabita recebeu pela hostilidade para com o povo israelita
na época do êxodo não devia ser transferida para Rute. Cada indivíduo é
responsável por seus atos. Rute não devia ser punida por um ato que não cometeu
(Jr 17.10);
4.Os
anciãos aprovaram o casamento de Rute e Boaz. Para os anciãos, Rute e Boaz não
estavam transgredindo nenhuma lei ao unir-se em matrimônio (Rt 4.11-12).
Os aspectos
diretos são os seguintes:
1.Rute
acolheu a fé do povo de Israel (Rt 1.16-17);
2.Rute
não é uma ameaça à devoção ao Deus verdadeiro (Rt 2.11);
3.Deus
permitiu que Rute fizesse parte da linhagem de Cristo (Rt 4.13-22).
Diante de todos estes aspectos, podemos
afirmar que Rute e Boaz são um casal fora da lei, fora da lei da exclusão.
A LEI DO AMOR
Ao passo que Esdras e Neemias
confirmaram a lei da exclusão, o profeta Isaías, que viveu cerca de 300 anos
antes de Esdras e Neemias, nos revelou o amor de Deus para além das fronteiras do
povo de Israel. Isaías disse que pessoas de diferentes nacionalidades seriam agregadas
ao povo de Deus (Is 44.5; 51.4-5). Rute representa antecipadamente as nações
não judias que viriam a ser juntadas ao povo de Deus.
Jesus deixou claro que não é uma linhagem
que torna uma pessoa filha de Deus. Em João 8.31-36, algumas pessoas se
julgavam parte do povo de Deus por serem descendentes de Abraão, mas Jesus lhes
afirmou que é parte do povo de Deus quem realmente ouve e segue os seus
ensinamentos. Em outro trecho do Evangelho, Jesus disse que de pedras poderia
suscitar descendentes de Abraão (Mt 3.9). O amor de Deus não se limita a uma
linhagem. Deus ama todos os seres humanos e quer que todos o conheçam e sejam
salvos (Ez 18.23; Mc 16.15; Ap 14.6-7).
Deus
olha para o coração do ser humano. Em Cristo, ele se agrada dos atos de amor
dos seres humanos (Cl 3.12). Rute mostrou amor a Deus e amor ao próximo. O amor
a Deus e o amor ao próximo são a base de toda a lei e de todo o ensinamento
bíblico (Mt 22.36-40). Estamos obedecendo toda a lei quando colocamos o amor em
prática (Rm 13.10). A lei do amor nos levar a entender por que Rute faz parte
da linhagem de Cristo, segunda pergunta que fizemos no início desse artigo.
Deus sabe das nossas limitações em
cumprir a sua vontade e da nossa dificuldade em entender aos seus ensinamentos.
Deste modo, em um ato de amor incompreensível, Deus mandou seu Filho, Jesus
Cristo, ao mundo para nos livrar de todo o peso da lei. Em nosso lugar, Jesus
cumpriu todas as exigências da lei. Crendo em Jesus, estamos livres da maldição
da lei. Nesta liberdade, como cidadãos dos céus, buscamos amar como Cristo nos
amou (1Jo 4.19).
A morte e a ressurreição de Cristo
asseguram a todos os que nele creem: perdão, salvação e vida eterna. Nele somos
aceitos por Deus. Agora, ninguém mais está excluído do convívio com Deus. Todos
estamos livres da antiga lei. Deus nos vê através de Cristo e nos aceita como seus
filhos e filhas.
Ivonelde Sepúlveda Teixeira
Congregação Redentor, São Paulo, SP
Formada em Teologia e Biblioteconomia/Ciência da Informação
BIBLIOGRAFIA
BÍBLIA.
Português. Bíblia de Estudo Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
BÍBLIA.
Português. Bíblia Sagrada: antigo e novo testamento. Nova Tradução na
Linguagem de Hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.
KASCHEL,
Werner; ZIMMER, Rudi. Dicionário da
Bíblia de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2016.
MANUAL BÍBLICO SBB. Tradução de Lailah de
Noronha. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018.
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