Um
dos episódios difundidos da vida de Jesus, registrada por Lucas, aconteceu numa
aldeia. Qual? Não importa, é insignificante, o evangelista não sentiu
necessidade de transmitir o nome. O relato de algumas linhas nos introduz na
vida cotidiana: ambiente doméstico, distribuição de tarefas, desavenças.
Enquanto Marta se preocupa com providências para a refeição, Maria conversa com
Jesus (Lc 10.38-42). O trabalho de Marta se reduzia a atividades privadas,
pública era a ocupação dos homens: administração, justiça, sacerdócio,
segurança, defesa, transporte, comércio. A revolução feminina aconteceu na
primeira metade do século passado. Enquanto os homens partiam para combater, o
trabalho das mulheres era solicitado em hospitais, escolas, agências bancárias,
escritórios, fábricas... Mulheres conquistaram o direito de votar, apareceram
em posições administrativas, lutam por melhores salários, por
reconhecimento.
Severas
são as exigências a obreiros. A fadiga das horas de trabalho é agravada pela
locomoção, por obrigações familiares. Salários baixos não cobrem as despesas.
Vontade de trabalhar não basta, o mercado de trabalho exclui muitos, a
população desempregada cresce. Corremos o risco de sermos reduzidos a
produtores e consumidores, o produto sufoca a felicidade individual, ignora
preocupações com o sentido da vida, deixa-nos sem resposta para o sofrimento,
para a morte.
A
sociedade produtiva é diabólica: polui, desertifica, despedaça, acumula
objetos, concentra riquezas nas mãos de poucos. A violência doméstica inferniza
a convivência. Como viver se no rolar das horas momento algum oferece descanso?
Como respirar sem música, sem flores, sem perfumes, sem amigos?
Marta
adquire consciência de si frente a Maria. o cansaço a faz refletir. Quem sou
eu?Quem é ela? Por que ela não me
ajuda? O convite partiu de Marta, quem entretém o convidado é Maria. Marta
alerta Jesus: não é justo que seja assim. O Profeta responde enigmaticamente:
Maria escolheu a única coisa necessária. Que coisa é essa? Marta terá que
sossegar, Maria terá que falar. A discussão do mistério aproximará as irmãs,
assunto para muitas horas de conversa; Jesus não estará distante de ninguém,
estará presente no convívio, nas opiniões emitidas, ainda que ausente.
Como
conciliar a operosidade e a contemplação, como resolver conflitos? A questão
deverá ser discutida no lugar em que vivemos. Não esperemos soluções eruditas, Cristo
nasce numa estrebaria, trata de relações humanas com mulheres de aldeia. O
enigma proposto por Jesus a Maria e Marta é o nosso. A harmonia não aparece
pronta, ela é construída. Deus é artista, o mundo é sua obra de arte, o Criador
harmoniza pessoas e coisas, permite que cada um atue no momento adequado. Quem
esteve com Jesus sabe organizar, conecta o que tende a se dispersar. Maria recebe
o invisível, o que pode salvar da dispersão. A fala de Jesus é paciente, redime
de atividades múltiplas e passageiras. As palavras de Jesus são divinas, o
divino impregna a ação, constrói o lar, dá sentido ao emprego, ao mundo. A
conversa solidifica a cooperação, evita a ameaça de ruptura. Nem só de pão vive
o homem, o afeto valoriza a luta pela sobrevivência; se expulsamos o afeto, a
violência arromba portas e janelas. Sentimos a presença do divino nos
intervalos que distanciam de urgências profissionais. Quando a mão esquerda não
sabe o que faz a direita, percebemos a densidade do momento, a sinceridade dos
apelos.Na dispersão, Marta perde,
perde-se a si mesma. Quem sou eu? Maria representa os que estiveram com Jesus,
o Salvador tranquiliza, convida a ouvir, a pensar.Se consideramos a vida instrumento para
produzir, para acumular, transformamo-nos em máquinas, passamos a temer os
robôs, mais fortes, mais eficientes do que nós. Sem personalidades produtivas
como Marta, o mundo para; sem mentes contemplativas como a de Maria, o mundo se
desagrega. Cristo age em Maria, age em Marta no lugar em que elas estão, também
em sociedades complexas, como a nossa. Sem a única coisa necessária, centro de
unificação, o mundo se dispersa e nós nos dispersamos com ele.
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