O
que chamamos hoje de Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) não era,
inicialmente, um sínodo independente, mas um dos muitos distritos da Lutheran Church-Missouri
Synod (LCMS). Naquelas primeiras décadas, era comum que pastores
norte-americanos viessem servir no Brasil. Alguns permaneceram por aqui por
longos anos. Muitos estiveram por pouco tempo. Seja como for, é certo que os
que se aventuraram neste país tão distante dos Estados Unidos (lembre-se de que
vinham e voltavam em demoradas viagens de navio!) viveram a oportunidade e o
desafio de dialogar com uma cultura diversa. Assim como eles deixaram entre nós
um legado de seu trabalho, levaram consigo também, em seu retorno à América do
Norte, experiências significativas.
Um
desses vários pastores foi Otto Beer (1897-1988). Filho de pastor nos Estados
Unidos, Otto chega ao final de seu percurso no Concordia Seminary (St. Louis)
em 1920. Aquele jovem nascido em 8 de abril de 1897, recebe um chamado para o
Brasil. Ele conversa com Lena Blume, que viria a ser sua esposa. Ela gostaria
de ir!
Otto
Beer é ordenado em 21 de março de 1920. Casa-se em 27 de abril do mesmo ano. Em
junho, Otto e Lena começam sua viagem rumo a São Leopoldo.
O
tempo que viveram por aqui é marcado por intenso trabalho na região de São
Leopoldo, Novo Hamburgo e Porto Alegre, além de uma mais breve estada em Roca
Sales.
Nas
memórias do pastor Beer, escritas na década de 1970, encontramos, por exemplo,
explicações sobre o costume de se tomar chimarrão e uma inusitada saudade do
chuchu: “Eu não sei como se soletra corretamente o nome dessa fruta, se é que
era fruta. Ela cresce numa planta como ‘vinha’, parece com algo como uma pera e
era cozida em melado de açúcar, feita na forma de salada como batatas e
preparada de diversas outras formas. Tinha um gosto bom e nós frequentemente
sentimos falta dela por aqui”. Além dessas peculiaridades mais triviais, há
algum detalhamento sobre seu trabalho missionário e, por exemplo, menção de sua
participação na fundação da Casa Publicadora Concórdia do Brasil (hoje Editora
Concórdia), na qual trabalhou até 1930, com a curiosa anotação de que, à época,
Pete Seuel, da Concordia Publishing House, dos EUA, mostrou-se um pouco
insatisfeito pelo uso do nome.
Contudo,
entre vários acontecimentos, dificuldades e realizações, de toda a história de
Otto e Lena Beer no Brasil, um episódio se destaca. Trata-se da curta vida de
sua primeira filha, Dorothy. Julgo válido traduzir as próprias palavras do
pastor:
"Dorothy
Louise nos foi dada no dia 22 de maio de 1921. Ela era uma criança saudável e
se desenvolvia muito bem. Mas sua estada conosco foi curta. No dia 30 de
novembro, eu tive meu primeiro ensaio com as crianças para o culto da véspera
de Natal. A sessão começou às 19h. Era verão e os dias eram longos. Então, eu
disse a Lena para deixar Dorothy pronta, e visitaríamos os Merkers depois das
20h. Mas quando voltei para casa, Lena me contou que Dorothy tinha vomitado. Eu
fui ao seu berço, tomei-a nos braços – e ela vomitou de novo. Quando vomitou,
era como água jorrando de uma mangueira. Nós chamamos o médico, que declarou
que se tratava de meningite. Ela passou bastante bem até o entardecer seguinte,
quando começou a jogar sua cabeça para frente e para trás e a emitir gemidos
terríveis. Continuou assim durante toda a noite. Então, dia 2 de dezembro,
nossa professora me chamou ao quarto dizendo que a criança parecia pior. Eu a
tomei nos braços – e, num piscar de olhos, ela faleceu. Nós a sepultamos no dia
seguinte no Cemitério de São Leopoldo, onde ela está dormindo até a grande
manhã da ressurreição. Nós esperamos encontrá-la novamente aos pés do Cordeiro,
que preparou um lugar para todos os que o amam. Seu túmulo tem sido cuidado
todos esses anos. Eu ainda envio ao pastor Warth um presente de Natal por seus
esforços em nosso favor por esses 50 anos."
Mesmo
na exposição dessa memória tão dolorosa, o pastor Beer encontra na Palavra a
fonte de sua esperança e, além disso, não deixa de comunicar a nós, seus
leitores, essa luz em meio às sombras da vida.
Após
mais de nove anos no Brasil, o pastor Otto volta para os Estados Unidos com sua
família, ainda com o propósito de retornar. Lá, percebe que, durante essa
década de ausência, muita coisa havia mudado entre seus parentes. Pessoas
faleceram. Pessoas se casaram. Filhos nasceram.
Ouvindo
conselhos de seu pai e pensando no bem de sua família, decide aceitar um
chamado para a Immanuel Lutheran Church, na cidade de Springfield (Illinois),
sendo ali instalado no primeiro domingo de julho de 1931.
Em
1984, doze anos depois de escrever suas memórias, que serviram de base para o
presente relato, o pastor Beer comenta sobre a repercussão inesperada dessa sua
autobiografia. Conclui com as seguintes palavras:
“Posso
dizer às minhas humildes memórias: Vão e contem às pessoas sobre a vida e o
trabalho de um missionário. Deixem que sobrinhos e sobrinhas tenham uma cópia,
e outros também. Que isso possa acrescentar adoração e gratidão ao nosso grande
Deus, que enviou Seu Filho Jesus Cristo para redimir a humanidade pecadora, e,
ainda agora, convida todos os pecadores: CRÊ NO SENHOR JESUS CRISTO, E SERÁS
SALVO.”
Nós
dizemos: Amém.
Cesar Motta Rios
Pastor em Miguel Pereira, RJ
DEPOIMENTO
“Meu envolvimento com esta história teve início no ano passado. Lendo a
bonita história que consta no livro Um Grão de Mostarda (Editora
Concórdia), me interessei em saber onde descansava o corpo da pequena Dorothea
que teve a vida aqui neste mundo muito breve! Após algumas pesquisas, encontrei
no local uma lapide em mármore coberta por musgos, sem flores, enfim, uma
sepultura esquecida! Aliás, já estava na lista da Prefeitura para ser desocupada,
pois a taxa anual para uso do espaço não estava sendo paga. Como eu fazia parte
da diretoria da comunidade Concórdia, de São Leopoldo, onde o pastor Otto Beer,
pai da menina, exerceu o ministério pastoral, sugeri à Diretoria da época que a
lápide fosse trazida para o jardim da comunidade, a fim de que fosse preservada
a memória; a ideia foi aceita e assim fizemos!
A lápide ficou lá até que a nova liderança da comunidade entendeu que
ali não era o lugar mais adequado, então, com a ajuda da sra. Cinara Jung, damos
início à regularização da sepultura junto à administração do cemitério. Por minha
conta, contratei um pedreiro que fez a reforma do túmulo e recolocou a lápide
no lugar devido; desde então, por residir próximo ao cemitério, tenho cuidado
deste túmulo como se fosse de um familiar meu, fazendo a limpeza necessária e colocando
flores de vez em quando. A lápide que outrora estava encoberta pelo limo, hoje,
limpa, informa em alemão: "Aqui repousa em paz Dorothea Beer". Fico
muito feliz e agradecido a Deus que com esta pequena atitude está preservada
uma parte da história da nossa igreja, de um pai pastor que deixou a sua terra
para trabalhar na edificação do Reino e voltou para os EUA, deixando adormecida
aqui um pedaço de sua vida! Segundo palavras do pastor Otto Beer, descritas no
livro Um Grão de Mostarda, ele tinha a firme esperança de um dia
encontrar-se com esta filha junto à árvore da vida! Que belo testemunho!”
(São Leopoldo, 17 de setembro de 2020, Tiago Jeske).