Oberammergau: Como uma cidade enfrentou a pandemia


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16/04/2023 #Artigos

Há diferentes maneiras de se proteger de uma pandemia. Vacinas? Máscaras? Lock-down? Promessas?

Oberammergau: Como uma cidade enfrentou a pandemia

PROMESSA FEITA

Houve na história uma forma estranha de combater o surto mundial de uma pandemia. Que continua até os nossos dias.

No século 14, a chamada Peste Negra devastou a Europa, vinda da Ásia, quando se estima que a bactéria Yersina pestis causou cerca de 75 milhões de mortes ou mais. Um segundo surto da peste surgiu na Europa no século 17, entre 1623 e 1640. Estudos indicam que esse surto esteve associado ao movimento de tropas durante a Guerra dos Trinta Anos. Além das baixas nas batalhas, muitos caíram vítimas da pandemia. A Alemanha, em particular, foi grandemente atingida.

Em 1632, a Peste Negra atingiu a Baviera, no sul da Alemanha, e, nela, uma cidadezinha pacata ao pé dos Alpes alemães, Oberammergau. Eram já 80 os mortos na cidade quando o conselho de governo, formado por cidadãos católicos, reuniu-se e fez a promessa solene de, caso fossem poupados da doença, fazer uma encenação periódica da Paixão de Cristo a cada dez anos. Foi um voto de desespero, porém espontâneo, de uma comunidade católica. A primeira representação foi feita em 1634, no pátio da igreja e junto ao túmulo das vítimas da peste. A igreja de São Pedro e São Paulo, nesse local, é uma das mais suntuosas que se conhece. Destacam-se os afrescos no teto, representando a crucifixão de Pedro e a morte de Paulo pela espada.

O voto feito pelo conselho da cidade de Oberammergau deu origem à hoje mundialmente famosa tradição dos Passionsspiele, no original, ou, em inglês, Passion Play, que acontece todos os dez anos em dezenas cheias. Deixou de ser encenada apenas poucas vezes, como em 1940, em plena Segunda Guerra. Em 2020 a apresentação de número 42 foi adiada por 2 anos devido à pandemia do Covid-19. Sendo assim, as apresentações do festival nesta década aconteceram no ano de 2022, de maio a outubro, em torno de cem. Contam com a participação de atores e figurantes que devem ter nascido na cidade ou estar residindo nela há pelo menos dez anos, e chegam a ter até 2.000 participantes. O coral e a orquestra, de alta performance, também devem ter ligação direta com a cidade.

Em junho de 2022, a família do pastor capelão Gerson Flor assistiu à apresentação com ingressos já adquiridos em 2020. O pior momento da pandemia já havia passado, os figurantes haviam feito meses de ensaios, os homens não faziam a barba desde dezembro, tudo para vivenciar as cenas o mais próximo possível à época que representavam. O espetáculo constava de duas sessões, uma à tarde e outra, na sequência, à noite. Os textos dos personagens eram basicamente tirados da Bíblia, tanto do Novo Testamento, como as referências que se fazia a cenas do Antigo Testamento. Estas últimas constavam de quadros fixos e serviam de ligação do tipo profecia/cumprimento ou da tipologia de fatos da história bíblica, que se espelhavam nos acontecimentos da paixão e morte do Salvador. Essa ligação de fatos unindo os dois testamentos foi, a nosso ver, o mais interessante a ser ressaltado em toda a apresentação, como se pode ver a seguir. Em todos se destaca a relação e o confronto de problema e livramento, de angústia e proteção, com o ser humano buscando em plena pandemia a certeza de um desfecho feliz.

A TEOLOGIA DO EVENTO

O Antigo e o Novo Testamentos estão interligados na Paixão de Cristo.

A cena se abre com a entrada de Jesus em Jerusalém e enfoca o desejo da humanidade de encontrar salvação e esperança oferecidas por Cristo. No brado do “Hosana”, o povo expressa essa busca por socorro. A contracena é a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Agora as portas do paraíso perdido no Éden tornam a se abrir.

Jesus então vai a Betânia, onde havia ressuscitado a Lázaro. A cena é precedida por um quadro da história do Antigo Testamento que mostra a passagem de Israel pelo Mar Vermelho, como prenúncio da redenção que Deus oferece ao povo. O líder Moisés é a figura que antecipa a obra de Jesus na condução de seu povo.

Quando Jesus chega ao templo de Jerusalém e expulsa os vendilhões, o contraponto é feito com a imagem do bezerro de ouro junto ao Sinai e de como Moisés se enfurece e destrói o mesmo.

A cena de Jesus no jardim Getsêmani é posta em analogia com o chamado de Moisés junto à sarça ardente. Ambos se dizem incapazes de realizar a obra de libertação do povo de Deus. Ambos entregam o êxito da tarefa proposta nas mãos do Pai.

O interrogatório de Jesus perante Anás e Caifás é precedido pelo quadro de Daniel na cova dos leões, depois de também haver sido injustamente acusado. Deus está com Cristo em sua angústia como esteve com o profeta.

O momento em que Jesus é condenado por Pilatos é antecedido pela imagem de José, vendido por seus irmãos ao Egito, mal que se transforma em bem e salvação para toda a família, ao final. A voz de Deus pode estar presente mesmo quando alguém se mantém em silêncio.

O quadro que mostra o desespero de Judas, ao devolver o dinheiro da traição, se espelha na imagem de Caim, quando se confronta com sua culpa na morte de Abel. O Deus de Israel não é apenas o Criador, mas também o protetor da vida humana, pela qual todos são responsáveis perante ele.

Impressiona a cena em que Jesus carrega sua própria cruz, que segue ao quadro em que o pequeno Isaque ajuda a carregar a lenha para o seu sacrifício, servindo de paradigma para a via crucis de Jesus. A mensagem que liga os dois fatos é que não importa o sacrifício humano, mas, sim, um coração inteiramente dedicado à causa que o Senhor lhes propõe.

O quadro da serpente de metal que Moisés levanta no deserto para livrar o povo da endemia das serpentes preconiza a crucifixão do Salvador numa cena dramática, para a cura de todos os males aos que creem.


A última cena é a da ressurreição de Jesus e aponta para o livramento final e a vitória sobre o mal e a morte.

PROMESSA CUMPRIDA

A promessa feita pelo conselho de Oberammergau está sendo mantida até hoje. Na época em que foi feita, pelo que se sabe, o surto da peste cessou. Pelo visto, Deus atendeu as preces desse povo em crise. Sabemos que o cristão pode fazer uma promessa quando tiver a intenção sincera de cumpri-la. Oberammergau transmite a quem a visita uma sensação de paz e segurança. Hoje, com pouco mais de 5.000 habitantes, tornou-se a sede de uma escola militar da OTAN, que oferece cursos nas áreas de serviços secretos, logística e operações. O espetáculo da paixão atrai cerca de 500 mil expectadores no período da encenação e movimenta a economia e a cultura da cidade. Os cristãos que fizeram a promessa por certo confiam nos cuidados de Deus sobre seus lares e na proteção divina sobre todos os que participam de seu voto.

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Elmer Flor

Pastor Emérito em Porto Alegre, RS

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